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A inteligentíssima trindade
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A inteligentíssima trindade
Desapareceram em 2016 três pessoas que podiam simbolizar a capacidade de construir caminhos e pontes para mundos diferentes
Este ano foi uma merda. A avaliação é sempre pessoal. A contabilidade é minha. Mas afirmo que estamos todos mais pobres em relação à nossa capacidade de reinventarmos coletivamente os caminhos da nossa vida. Dois mil e dezasseis foi o ano em que morreram, com muito para dar, o arquiteto Diogo Seixas Lopes, o fotógrafo Pedro Cláudio e o historiador e escritor Paulo Varela Gomes.
Fui amigo dos três, mas não é sobre isso que vou escrever. Aquilo que mais me irrita em obituários é quando o autor do suposto elogio passa o tempo a elogiar-se a si mesmo à conta dos defuntos. Nenhum dos três fez de mim seu confessor nem me telefonavam diariamente, como Popper fazia a João Carlos Espada. A única coisa que tenho a dizer de forma pessoal é que aproveitei desgraçadamente pouco a sua presença viva.
Os três não pensariam certamente da mesma maneira, conheciam-se mas eram de idades diferentes. Mas todos pensavam de forma pouco convencional e não cabiam nas caixas que tinham feito para eles. Não compartilhavam a maldição do “é assim e sempre será assim”. “Penteiam-nos os crâneos ermos/ com as cabeleiras das avós/ para jamais nos parecermos/ connosco quando estamos sós”, denunciava Natália Correia na “Queixa das Almas Jovens Censuradas”.
O mínimo que podíamos dizer destes três é que queriam produzir as suas próprias circunstâncias. Foram todos de uma geração que se desenvolveu, embora o Paulo fosse mais velho, depois da conquista da liberdade e que viu um momento que todos os caminhos eram possíveis.
Diogo Seixas Lopes assumia diretamente essa ideia de rutura no seu trabalho. Quando o criticaram por um projeto de uma torre de 17 andares no meio das Avenidas Novas, como se fosse uma violência despropositada para aquilo que era normal e natural naquela parte da cidade, ele argumentou que toda a intervenção arquitetónica altera um espaço pré-existente, assumindo assim a característica abrupta e polémica desse tipo de intervenção arquitetónica que assinalava, segundo ele, o nascimento de uma certa época e era uma espécie de espelho dessa mudança temporal: “Este espelho não acontece naturalmente e por isso há uma certa violência nestes gestos”, justificava. Para ele, o trabalho da arquitetura não era só conformar-se à cidade existente, era também produzir a nova cidade.
Conheci Pedro Cláudio quando participei na criação da revista “Cadernos Politika”. Foi-me apresentado, ele e o Jorge Nogueira, por um amigo comum. Os dois fizeram grande parte das coisas boas da revista. O Pedro juntava o perfeccionismo técnico a uma imaginação galopante. Criava imagens a golpes de luz. Dava-lhe verdadeiro gozo fazer com que a realidade se dobrasse perante a sua inteligência. Nunca achava que era impossível melhorar o que se fazia.
Quando achou que a fotografia o limitou, passou para o vídeo com a mesma capacidade de criar perfeição. Dele tenho apenas uma história pessoal em que eu faço de mau, por isso não é autoelogio. Nós, os jornalistas, gostamos de histórias vivas. Procuramos as mais reveladoras e as mais contraditórias. Uma vez tropecei numa que envolvia uma amiga do Pedro, uma rapariga que tinha sido modelo e a quem ele tinha tirado muitas fotografias, uma delas uma icónica capa da revista “Kapa” em que surgia nua, coberta apenas de flores.
Essa pessoa tinha ido tirar um curso de Filosofia e, durante a sua aprendizagem, por influência de um professor, tinha-se convertido à religião e decidido entrar num rigoroso convento de clausura. Quis entrevistá-la e pedi o contacto ao Pedro. Ele recusou, dizendo que a amiga tinha escolhido essa via silenciosa, e ele, mesmo não concordando, achava que ela tinha direito ao silêncio.
Na sua última aula, um colega apresentou Paulo Varela Gomes, dizendo que embora ele tenha dado milhares de aulas, nunca repetiu uma única e nunca uma cadeira sua manteve o programa mais de que um ano. Paulo estava permanentemente insatisfeito e permanentemente em busca de um sentido. Era brilhante, provocador, irónico. Passeava um sorriso de desafio, desarmante e terno. As suas ideias parecem contraditórias: comunista, radical, conservador e, nesta última fase, cristão.
Mas nelas há uma urgência comum. Há a defesa da humanidade contra o progresso que parece levar-nos inexoravelmente para o abismo. Usando uma imagem de Walter Benjamin, o progresso é uma espécie de gigante que, ao acordar estremunhado, destrói tudo ao seu redor. Para Paulo Varela Gomes era possível refazer um passado que funcionasse, um passado reinventado no presente. “Vi o passado e ele funciona”, escreveu.
Possuia outro aspeto raro nos dias de hoje, uma enorme e disruptiva radicalidade. Defendia que a nossa situação era devida à incapacidade que tínhamos de levarmos as nossas convicções até às últimas consequências. O Paulo Varela Gomes não pertencia à tribo, tão comum entre nós, “do agarra-me senão eu bato-lhe”.
Jornalista
02/05/2016
Nuno Ramos de Almeida
Cultura
nuno.almeida@newsplex.pt
Jornal i
Este ano foi uma merda. A avaliação é sempre pessoal. A contabilidade é minha. Mas afirmo que estamos todos mais pobres em relação à nossa capacidade de reinventarmos coletivamente os caminhos da nossa vida. Dois mil e dezasseis foi o ano em que morreram, com muito para dar, o arquiteto Diogo Seixas Lopes, o fotógrafo Pedro Cláudio e o historiador e escritor Paulo Varela Gomes.
Fui amigo dos três, mas não é sobre isso que vou escrever. Aquilo que mais me irrita em obituários é quando o autor do suposto elogio passa o tempo a elogiar-se a si mesmo à conta dos defuntos. Nenhum dos três fez de mim seu confessor nem me telefonavam diariamente, como Popper fazia a João Carlos Espada. A única coisa que tenho a dizer de forma pessoal é que aproveitei desgraçadamente pouco a sua presença viva.
Os três não pensariam certamente da mesma maneira, conheciam-se mas eram de idades diferentes. Mas todos pensavam de forma pouco convencional e não cabiam nas caixas que tinham feito para eles. Não compartilhavam a maldição do “é assim e sempre será assim”. “Penteiam-nos os crâneos ermos/ com as cabeleiras das avós/ para jamais nos parecermos/ connosco quando estamos sós”, denunciava Natália Correia na “Queixa das Almas Jovens Censuradas”.
O mínimo que podíamos dizer destes três é que queriam produzir as suas próprias circunstâncias. Foram todos de uma geração que se desenvolveu, embora o Paulo fosse mais velho, depois da conquista da liberdade e que viu um momento que todos os caminhos eram possíveis.
Diogo Seixas Lopes assumia diretamente essa ideia de rutura no seu trabalho. Quando o criticaram por um projeto de uma torre de 17 andares no meio das Avenidas Novas, como se fosse uma violência despropositada para aquilo que era normal e natural naquela parte da cidade, ele argumentou que toda a intervenção arquitetónica altera um espaço pré-existente, assumindo assim a característica abrupta e polémica desse tipo de intervenção arquitetónica que assinalava, segundo ele, o nascimento de uma certa época e era uma espécie de espelho dessa mudança temporal: “Este espelho não acontece naturalmente e por isso há uma certa violência nestes gestos”, justificava. Para ele, o trabalho da arquitetura não era só conformar-se à cidade existente, era também produzir a nova cidade.
Conheci Pedro Cláudio quando participei na criação da revista “Cadernos Politika”. Foi-me apresentado, ele e o Jorge Nogueira, por um amigo comum. Os dois fizeram grande parte das coisas boas da revista. O Pedro juntava o perfeccionismo técnico a uma imaginação galopante. Criava imagens a golpes de luz. Dava-lhe verdadeiro gozo fazer com que a realidade se dobrasse perante a sua inteligência. Nunca achava que era impossível melhorar o que se fazia.
Quando achou que a fotografia o limitou, passou para o vídeo com a mesma capacidade de criar perfeição. Dele tenho apenas uma história pessoal em que eu faço de mau, por isso não é autoelogio. Nós, os jornalistas, gostamos de histórias vivas. Procuramos as mais reveladoras e as mais contraditórias. Uma vez tropecei numa que envolvia uma amiga do Pedro, uma rapariga que tinha sido modelo e a quem ele tinha tirado muitas fotografias, uma delas uma icónica capa da revista “Kapa” em que surgia nua, coberta apenas de flores.
Essa pessoa tinha ido tirar um curso de Filosofia e, durante a sua aprendizagem, por influência de um professor, tinha-se convertido à religião e decidido entrar num rigoroso convento de clausura. Quis entrevistá-la e pedi o contacto ao Pedro. Ele recusou, dizendo que a amiga tinha escolhido essa via silenciosa, e ele, mesmo não concordando, achava que ela tinha direito ao silêncio.
Na sua última aula, um colega apresentou Paulo Varela Gomes, dizendo que embora ele tenha dado milhares de aulas, nunca repetiu uma única e nunca uma cadeira sua manteve o programa mais de que um ano. Paulo estava permanentemente insatisfeito e permanentemente em busca de um sentido. Era brilhante, provocador, irónico. Passeava um sorriso de desafio, desarmante e terno. As suas ideias parecem contraditórias: comunista, radical, conservador e, nesta última fase, cristão.
Mas nelas há uma urgência comum. Há a defesa da humanidade contra o progresso que parece levar-nos inexoravelmente para o abismo. Usando uma imagem de Walter Benjamin, o progresso é uma espécie de gigante que, ao acordar estremunhado, destrói tudo ao seu redor. Para Paulo Varela Gomes era possível refazer um passado que funcionasse, um passado reinventado no presente. “Vi o passado e ele funciona”, escreveu.
Possuia outro aspeto raro nos dias de hoje, uma enorme e disruptiva radicalidade. Defendia que a nossa situação era devida à incapacidade que tínhamos de levarmos as nossas convicções até às últimas consequências. O Paulo Varela Gomes não pertencia à tribo, tão comum entre nós, “do agarra-me senão eu bato-lhe”.
Jornalista
02/05/2016
Nuno Ramos de Almeida
Cultura
nuno.almeida@newsplex.pt
Jornal i
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