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CRÓNICA: A autobiografia moderna
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CRÓNICA: A autobiografia moderna
Bastam algumas páginas de uma autobiografia moderna para qualquer leitor perceber que se pode esperar escassa iluminação daquilo que as pessoas têm a dizer sobre as suas próprias vidas.
Desenvolvimentos recentes tornaram possível o acesso de largas quantidades de pessoas às suas próprias autobiografias. O género costumava ser reservado a conquistadores e santos, mas encontra-se hoje disponível a todos cujas vidas, exceptuado o desejo de publicar a sua autobiografia, foram plácidas; à vasta maioria daqueles em quem apenas eles próprios repararam.
Ao ler uma autobiografia moderna o que espanta mais é a firmeza com que o autor acredita que teve uma vida. ‘Confesso,’ declarou um desses autores, ‘que vivi.’ A confissão é porém desnecessária visto que viver não é uma ocasião rara; e era na maioria das vezes escusado que a confissão fosse feita por escrito. Tais confissões são não obstante muito frequentes; prodigalizam uma quantidade grande de pormenores que afligem e confundem os leitores; descrevem com minúcia invulgar o que se passava numa certa companhia de cimentos, num balneário, numa clínica, numa mente, ou numa estação de televisão; e logo após a primeira ocorrência os nomes de muita outra gente, e um sem-número de factos, são usados com uma intimidade desconcertante; tudo dá a ideia de um jogo jogado num planeta remoto, de que se presume erradamente que conhecemos as regras.
As autobiografias modernas são compradas com curiosidade, e quase sempre abandonadas com perplexidade. No momento da compra intimam revelações e progressos; o que lá se passa todavia é normalmente rarefeito e opaco. Há poucos casos de franqueza bruta ou refrescante: e muito poucos em que se diz alguma coisa. É certo que se promete a anunciação de segredos, e em pormenor; se induzem razões próprias e pensamentos; até, nalguns casos, complicações de amor. Mesmo os incidentes mais salazes porém, com tudo para agradar aos leitores, têm sempre nas autobiografias um aspecto algébrico que acaba por descoroçoar quem compra os livros. Bastam algumas páginas para qualquer leitor perceber que se pode esperar escassa iluminação daquilo que as pessoas têm a dizer sobre as suas próprias vidas.
As autobiografias modernas são assim abandonadas com a tristeza com que verificamos que nos enganámos de escova de dentes. Ao longe a vida alheia parecia igual à nossa, inteira e boa; mas depois de a ver mais de perto sabemos que já não serve. Ao nos ser gradualmente comunicado aquilo que o dono da autobiografia achou que lhe aconteceu torna-se manifesto que a vida que teve era exactamente igual àquela que nos queixamos de ninguém ter reparado que tivemos; mas com o defeito importante de não ser a nossa. A companhia de cimentos, a estação de televisão, o balneário, a clínica, a mente, eram um disfarce ou um acidente. A diferença principal entre nós e ele é apenas ter ele levado à prática a ideia moderna de que a sua vida dava um livro.
Miguel Tamen
13/5/2016, 3:38
Observador
Desenvolvimentos recentes tornaram possível o acesso de largas quantidades de pessoas às suas próprias autobiografias. O género costumava ser reservado a conquistadores e santos, mas encontra-se hoje disponível a todos cujas vidas, exceptuado o desejo de publicar a sua autobiografia, foram plácidas; à vasta maioria daqueles em quem apenas eles próprios repararam.
Ao ler uma autobiografia moderna o que espanta mais é a firmeza com que o autor acredita que teve uma vida. ‘Confesso,’ declarou um desses autores, ‘que vivi.’ A confissão é porém desnecessária visto que viver não é uma ocasião rara; e era na maioria das vezes escusado que a confissão fosse feita por escrito. Tais confissões são não obstante muito frequentes; prodigalizam uma quantidade grande de pormenores que afligem e confundem os leitores; descrevem com minúcia invulgar o que se passava numa certa companhia de cimentos, num balneário, numa clínica, numa mente, ou numa estação de televisão; e logo após a primeira ocorrência os nomes de muita outra gente, e um sem-número de factos, são usados com uma intimidade desconcertante; tudo dá a ideia de um jogo jogado num planeta remoto, de que se presume erradamente que conhecemos as regras.
As autobiografias modernas são compradas com curiosidade, e quase sempre abandonadas com perplexidade. No momento da compra intimam revelações e progressos; o que lá se passa todavia é normalmente rarefeito e opaco. Há poucos casos de franqueza bruta ou refrescante: e muito poucos em que se diz alguma coisa. É certo que se promete a anunciação de segredos, e em pormenor; se induzem razões próprias e pensamentos; até, nalguns casos, complicações de amor. Mesmo os incidentes mais salazes porém, com tudo para agradar aos leitores, têm sempre nas autobiografias um aspecto algébrico que acaba por descoroçoar quem compra os livros. Bastam algumas páginas para qualquer leitor perceber que se pode esperar escassa iluminação daquilo que as pessoas têm a dizer sobre as suas próprias vidas.
As autobiografias modernas são assim abandonadas com a tristeza com que verificamos que nos enganámos de escova de dentes. Ao longe a vida alheia parecia igual à nossa, inteira e boa; mas depois de a ver mais de perto sabemos que já não serve. Ao nos ser gradualmente comunicado aquilo que o dono da autobiografia achou que lhe aconteceu torna-se manifesto que a vida que teve era exactamente igual àquela que nos queixamos de ninguém ter reparado que tivemos; mas com o defeito importante de não ser a nossa. A companhia de cimentos, a estação de televisão, o balneário, a clínica, a mente, eram um disfarce ou um acidente. A diferença principal entre nós e ele é apenas ter ele levado à prática a ideia moderna de que a sua vida dava um livro.
Miguel Tamen
13/5/2016, 3:38
Observador
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