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    Mensagem por Admin Dom Jun 05, 2016 10:43 am

    O mais provável é que o meu mais novo nunca venha a saber guiar, porque quando vier a época de tirar a carta já não vai ser preciso ter carta para andar de carro para nenhum lado, porque os carros já vão andar sozinhos para todo o lado. Foi com base nesta certeza, que não é minha mas de todos os que estudam isto há décadas, que estive no Instituto Amaro da Costa a falar sobre veículos autónomos e os desafios que levantam para as leis e para as políticas públicas e regulação. Aquilo que era obra das obras de ficção científica, carros sem condutor, são uma realidade que está por dias, com muitos a apontar para em 2030 já haver mais veículos autónomos do que com condutor (e estão os taxistas preocupados com as ubers...).

    Automóvel etimologicamente já é uma coisa que se mexe sozinho (auto - móvel) e tem origem na dispensa do cavalo para levar as pessoas do ponto A para o ponto B. Mas, ironia das coisas, em rigor há mais autonomia a viajar a bois e cavalos do que num dois cavalos, porque uma carroça com tração animal tem vontade própria, pode dar uma coisa na vinheta do cavalo, é ele que reage a obstáculos, tem mente e corpo e, além disso, pode ser ensinado a andar sem condutor.

    O KITT, o carro do Justiceiro (Knight Rider), carro que salva, que ajuda, ao serviço do bem, é um dos paradigmas dos veículos autónomos, e da discussão sobre as decisões de policy em torno deste assunto - é o paradigma que procura explicar as vantagens. E as vantagens dos veículos autónomos são muitas, mas a principal delas são as vidas que salva. Diz-se, li, que em 2050 pode não haver mortes na estrada, ou quase. A entrega a um algoritmo do poder sobre o pedal e sobre o volante, em conjugação com a informação de dados de tráfego de um número crescente de outros veículos, num cenário de utilização massiva de dados de contexto (tráfego, condições da estrada, peões, meteorologia, obstáculos, acidentes), prevenirá tantos e tantos acidentes que há até quem aponte que se deve estudar o impacto dos veículos autónomos na diminuição de órgãos disponíveis para transplantes. Mais vidas, mas também menos carros. A automação automóvel acelerará a mobilidade partilhada, em que não somos donos de carros mas utilizadores de carros, à hora, ao dia, ao que for. Isto terá efeitos drásticos no desenho das cidades, no negócio do estacionamento.

    Mas há também o paradigma Christine, o carro assassino de King/Carpenter, com vida própria, que mata. E neste lado sombrio da discussão sobre veículos autónomos, a grande questão é a velha questão do de-quem-é-a-culpa? Vou das Amoreiras para o Cais do Sodré num carro sem condutor e, salvo seja, o carro abalroa um turista numa passadeira. De quem é a culpa? Minha? Do proprietário do carro (que posso não ser eu)? Da empresa que programa o veículo e que cometeu o erro que levou ao abalroamento? Os ordenamentos jurídicos, os países, têm de começar a pensar nisso. Há quem diga que para que haja incentivo da indústria em continuar a desenvolver os veículos autónomos tem de primeiro ser resolvida a questão dos seguros por erros do fabricante, e os montantes potencialmente envolvidos são tão grandes que apenas o Estado pode ajudar, segurando riscos, ou limitando responsabilidades (isto é muito Mazzucato).

    Há ainda os dilemas éticos na programação dos veículos em caso de colisão. Entre uma árvore e uma pessoa, o computador deve estar programado para, em caso de necessidade, o carro bater contra qual? Fácil. E se forem duas pessoas, por exemplo, na berma esquerda um velhote numa cadeira de rodas, na berma direita um bebé num carrinho, o carro deve estar otimizado para guinar para qual dos lados? E se de um lado estiver um peão e do outro uma parede que matará o ocupante do veículo autónomo? E se forem vários ocupantes? Ou devem programar-se para a decisão ser aleatória?

    Thelma and Louise é o terceiro paradigma, o confronto entre a liberdade e os veículos autónomos. Por um lado, ganha-se liberdade de várias formas (desde a liberdade espiritual que virá de um modelo de uso e não de propriedade), como se ganha mais tempo, tempo libertado pela redução da congestão de tráfego, e tempo libertado ao condutor das amarras do volante para outras coisas (um artigo no The New York Times há uns anos tinha um título sugestivo: "Less sexy, better for sex"). Mas vai haver perda de liberdade pela quantidade de informação que uma rede de mobilidade assente em veículos autónomos vai utilizar e armazenar. E, além desta perda de liberdade quanto ao passado (o maior problema dos dados é o fim do esquecimento), há o fim da liberdade de nos perdermos, de não virar na rua certa e ir parar a outro lado qualquer, de descobrir, de deixar o acaso conduzir. E há também a perda da liberdade de violar a lei, de virar onde não se pode, de passar o vermelho, de estacionar no passeio, de usar aquela lei superior dos quatro piscas que derroga quase todos os artigos do Código da Estrada. Porque o veículo verdadeiramente autónomo vai ser um porta-bem, um penteadinho, um dobra-o-pijaminha. Será que um dia vai ser proibido guiar, usar carros que não sejam autónomos, que vão ser os perigosos, os rufias, os que deixam a roupa espalhada pela casa? Irónico isto poder acontecer ao automóvel, um símbolo de liberdade.

    No limite, lá se vai a liberdade, se é liberdade, mas deve ser, de acelerar sempre em frente, como a Thelma e a Louise, de acelerar sempre em frente, e voar.

    05 DE JUNHO DE 2016
    00:01
    João Taborda da Gama
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