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CIÊNCIA: Os “deputados da peste”
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CIÊNCIA: Os “deputados da peste”
A história de um surto de peste bubónica no Porto, no final do século XIX, é bom exemplo de dissonância entre os serviços médicos e as autoridades políticas, com consequências na eleição de deputados.
No dia 4 de julho de 1899, Ricardo Jorge, director do Posto de Saúde Municipal da cidade do Porto, recebeu um bilhete “d’um negociante da rua de S. João”, alertando-o para “uns obitos que se tinham dado na rua da Fonte Taurina”. A rua, situada na zona da Ribeira, era então habitada maioritariamente por galegos, imigrantes que ganhavam a vida como carregadores e moços de fretes.
Não era gente com quem Ricardo Jorge perdesse habitualmente o seu tempo mas, porque o bilhete era de pessoa “de qualidade”, o médico mandou “tomar informações no lugar por um empregado”. Que voltou com a notícia de “uma espécie de febre com nascidas debaixo dos braços”. O próprio Ricardo Jorge visita os doentes no dia 6. As “nascidas”, ou “bubões”, que mais não eram que gânglios linfáticos inflamados, e o resto do quadro clínico fazem-no pensar na peste bubónica.
Internados os galegos no Goelas de Pau (o hospital criado 15 anos antes para receber e isolar os doentes durante a epidemia de cólera) e apesar de o seu espírito reagir “contra a suspeita de peste bubonica”, “moléstia tam exótica e remota”, Ricardo Jorge lança-se ao estudo do material purulento obtido dos doentes, com os recursos do laboratório municipal de bacteriologia. Um mês depois isola o “puro e legitimo bacillo de Yersin” (agora chamado Yersinia pestis, de Alexander Yersin, o colaborador de Pasteur que o isolou em Hong-Kong, em 1894), demonstrando cabalmente a existência de peste bubónica na cidade.
A peste bubónica, ou “peste negra”, que no século XIV matara mais de um terço da população da Europa, mantendo-se depois activa até meados do século XVII, nunca desaparecera inteiramente. Desde 1840, uma nova epidemia espalhava-se lentamente pela Ásia e Índia. Em 1898 houvera notícia de casos em Alexandria e surgia agora no Porto, muito provavelmente por via marítima.
Ricardo Jorge comunica “superiormente” as suas conclusões e prepara-se para agir. Director dos Serviços Municipais de Saúde e Higiene da cidade, era sua intenção mobilizar as estruturas sanitárias e a polícia para garantir o isolamento dos doentes e a desinfecção das casas e, desse modo, conter o surto sem perturbar a vida da cidade. Mas a Junta Consultiva de Saúde Pública, máxima autoridade sanitária no Reino, não entendeu da mesma forma.
A Junta, deve dizer-se, era, desde 1868, uma repartição da secretaria de Estado dos Negócios do Reino onde não tinham assento clínicos ou quaisquer outros especialistas de saúde pública, sendo a sua extensão territorial assegurada pelos governadores civis, administradores de concelho e regedores. Durante várias semanas, hesita sobre os relatórios enviados por Ricardo Jorge. Por fim, em meados de agosto, é feito um decreto a proibir as feiras e outros ajuntamentos e o governador civil declara o Porto escala marítima infectada (com as consequências que se imaginam para os negócios da cidade). Por fim, é imposto à cidade um cordão sanitário, controlado pela tropa.
O Jornal de Notícias e o Comércio do Porto, que até então tinham acompanhado o caso sem alarmismo, reagem violentamente. Colocam em dúvida o diagnóstico de Ricardo Jorge e a sua competência para o fazer. Não era um exercício inteiramente idiota. O próprio Ricardo Jorge admitia que “talvez surprehendesse” a descoberta, “demais por um investigador que nunca vira o bacillo da peste”. São portanto chamados “sábios estrangeiros”, espanhóis e franceses. Estes confirmam tratar-se de peste mas duvidam que o surto tenha começado em julho. O “bacilo de Yersin” já estaria na cidade há mais tempo, defendem. O que põe em causa a pertinência do cordão sanitário e restantes medidas decididas pelas autoridades.
Crescem os tumultos populares, alimentados e ampliados pelos jornais e Ricardo Jorge, que em nada fora achado nas decisões da Junta, é obrigado a sair da cidade, sob ameaças de morte. Cresce igualmente o sentimento de revolta face aos poderes “de Lisboa”, que se traduz rapidamente no campo político: nas eleições desse ano, o Porto, que nunca fora republicano, apesar do episódio do “31 de janeiro”, elegerá, pela primeira e única vez durante o regime constitucional, três deputados do PRP, com Afonso Costa à frente.
Nota: as citações são de um relatório de Ricardo Jorge escrito em setembro de 1899 e publicado em “Ricardo Jorge. A Peste bubonica no Porto – 1899. Seu Descobrimento – Primeiros Trabalhos. Repartição de Saúde e Hygiene da Câmara do Porto, 1899”.
Luís Carvalho Rodrigues
29/6/2016, 9:29
Observador
No dia 4 de julho de 1899, Ricardo Jorge, director do Posto de Saúde Municipal da cidade do Porto, recebeu um bilhete “d’um negociante da rua de S. João”, alertando-o para “uns obitos que se tinham dado na rua da Fonte Taurina”. A rua, situada na zona da Ribeira, era então habitada maioritariamente por galegos, imigrantes que ganhavam a vida como carregadores e moços de fretes.
Não era gente com quem Ricardo Jorge perdesse habitualmente o seu tempo mas, porque o bilhete era de pessoa “de qualidade”, o médico mandou “tomar informações no lugar por um empregado”. Que voltou com a notícia de “uma espécie de febre com nascidas debaixo dos braços”. O próprio Ricardo Jorge visita os doentes no dia 6. As “nascidas”, ou “bubões”, que mais não eram que gânglios linfáticos inflamados, e o resto do quadro clínico fazem-no pensar na peste bubónica.
Internados os galegos no Goelas de Pau (o hospital criado 15 anos antes para receber e isolar os doentes durante a epidemia de cólera) e apesar de o seu espírito reagir “contra a suspeita de peste bubonica”, “moléstia tam exótica e remota”, Ricardo Jorge lança-se ao estudo do material purulento obtido dos doentes, com os recursos do laboratório municipal de bacteriologia. Um mês depois isola o “puro e legitimo bacillo de Yersin” (agora chamado Yersinia pestis, de Alexander Yersin, o colaborador de Pasteur que o isolou em Hong-Kong, em 1894), demonstrando cabalmente a existência de peste bubónica na cidade.
A peste bubónica, ou “peste negra”, que no século XIV matara mais de um terço da população da Europa, mantendo-se depois activa até meados do século XVII, nunca desaparecera inteiramente. Desde 1840, uma nova epidemia espalhava-se lentamente pela Ásia e Índia. Em 1898 houvera notícia de casos em Alexandria e surgia agora no Porto, muito provavelmente por via marítima.
Ricardo Jorge comunica “superiormente” as suas conclusões e prepara-se para agir. Director dos Serviços Municipais de Saúde e Higiene da cidade, era sua intenção mobilizar as estruturas sanitárias e a polícia para garantir o isolamento dos doentes e a desinfecção das casas e, desse modo, conter o surto sem perturbar a vida da cidade. Mas a Junta Consultiva de Saúde Pública, máxima autoridade sanitária no Reino, não entendeu da mesma forma.
A Junta, deve dizer-se, era, desde 1868, uma repartição da secretaria de Estado dos Negócios do Reino onde não tinham assento clínicos ou quaisquer outros especialistas de saúde pública, sendo a sua extensão territorial assegurada pelos governadores civis, administradores de concelho e regedores. Durante várias semanas, hesita sobre os relatórios enviados por Ricardo Jorge. Por fim, em meados de agosto, é feito um decreto a proibir as feiras e outros ajuntamentos e o governador civil declara o Porto escala marítima infectada (com as consequências que se imaginam para os negócios da cidade). Por fim, é imposto à cidade um cordão sanitário, controlado pela tropa.
O Jornal de Notícias e o Comércio do Porto, que até então tinham acompanhado o caso sem alarmismo, reagem violentamente. Colocam em dúvida o diagnóstico de Ricardo Jorge e a sua competência para o fazer. Não era um exercício inteiramente idiota. O próprio Ricardo Jorge admitia que “talvez surprehendesse” a descoberta, “demais por um investigador que nunca vira o bacillo da peste”. São portanto chamados “sábios estrangeiros”, espanhóis e franceses. Estes confirmam tratar-se de peste mas duvidam que o surto tenha começado em julho. O “bacilo de Yersin” já estaria na cidade há mais tempo, defendem. O que põe em causa a pertinência do cordão sanitário e restantes medidas decididas pelas autoridades.
Crescem os tumultos populares, alimentados e ampliados pelos jornais e Ricardo Jorge, que em nada fora achado nas decisões da Junta, é obrigado a sair da cidade, sob ameaças de morte. Cresce igualmente o sentimento de revolta face aos poderes “de Lisboa”, que se traduz rapidamente no campo político: nas eleições desse ano, o Porto, que nunca fora republicano, apesar do episódio do “31 de janeiro”, elegerá, pela primeira e única vez durante o regime constitucional, três deputados do PRP, com Afonso Costa à frente.
Nota: as citações são de um relatório de Ricardo Jorge escrito em setembro de 1899 e publicado em “Ricardo Jorge. A Peste bubonica no Porto – 1899. Seu Descobrimento – Primeiros Trabalhos. Repartição de Saúde e Hygiene da Câmara do Porto, 1899”.
Luís Carvalho Rodrigues
29/6/2016, 9:29
Observador
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