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Ferrynadas
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Ferrynadas
O burkini tornou-se uma questão política, com o seu lado absurdo: uma mulher pode ser presa por usar burkini na praia, mas é improvável que o seja por andar nua…
Das muitas histórias recolhidas por Philippe Ragueneau, que foi secretário do General de Gaule, publicadas no livro Humeurs et Humour du Général, destaco a seguinte.
De Gaule, então Presidente da República Francesa, recebeu durante um fim-de-semana, na sua casa de Colombey, o seu homólogo Léopold Senghor, do Senegal. No domingo, sendo ambos bons católicos, foram juntos à missa. Só que, na altura da comunhão, de Gaule não avançou, como de costume, e impediu discretamente sua esposa Yvonne de ir comungar. Mais tarde, quando ela lhe perguntou o porquê desta atitude insólita, o General respondeu mais ou menos isto: a França é um país laico, onde a religião é um assunto privado; uma vez que estava presente outro Chefe de Estado, a missa passou a ser um ato público; logo, a nossa comunhão teria outro sentido…
Esta postura tem a sua raiz na legislação publicada a partir de 1880 por Jules Ferry, primeiro-ministro e ministro da educação do governo da III República Francesa (regime que havia de durar até à II Guerra Mundial). Ferry, apóstolo do laicismo do Estado, conseguiu a abolição do ensino religioso nas escolas públicas, e lançou as bases da separação das confissões religiosas do Estado. Daí que, em França (como em muitos outros países), o casamento religioso passou definitivamente a ser irrelevante para efeitos legais; só o casamento civil conta, sendo o religioso uma opção individual.
Esta postura laicista passou a ser uma característica francesa, suficientemente entranhada para explicar a atitude de de Gaule. Mas, quando tudo parecia pacífico nas terras da “Douce France”, eis que a questão dos símbolos religiosos foi relançada pelos muçulmanos, com a pretensão do uso em público, nomeadamente nas escolas, do chador, o véu dito obrigatório pelos seus preceitos religiosos.
Sublinho o dito porque há comunidades islâmicas onde o chador é desconhecido; basta lembrar as sociedades da África a sul do Sahara, ou do Extremo Oriente, para constar este fato (embora hoje comece a surgir, por militância). Ou seja, o chador tem mais a ver com costumes locais do que com o imperativo religioso. Mas, não sendo eu perito na matéria (embora tenha lido e consulte com certa frequência o Alcorão), deixo este assunto a quem estiver melhor habilitado.
Longe andam, felizmente, os tempos das guerras de religião, pelo menos na Europa, onde as comunidades religiosas gozam, não apenas de tolerância, mas do direito de cidadania. Mas há preceitos e princípios de que os estados europeus não abdicam. A título de exemplo: um princípio legalmente assente é o da monogamia; se outras religiões aceitam e praticam a poligamia (como os muçulmanos ou os mórmons), só um casamento (à escolha dos interessados) tem validade jurídica. Decorrente desta doutrina, temos o caso dos nossos antigos combatentes muçulmanos, quando se trata de atribuir uma pensão de viuvez: só se pode habilitar uma viúva; quanto aos filhos, à face do direito atual, todos têm direitos iguais.
Voltando a França, o debate iniciado com o chador parecia fazer regressar aos princípios de Ferry; mas, se não pode haver símbolos religiosos nas escolas, o chador na cabeça das muçulmanas estaria tão ilegal como o crucifixo ao peito dos católicos.
Assim se entrou na espiral da irracionalidade: argumentar que o crucifixo é tradicional, logo legítimo, e o chador não, significa negar a cidadania a milhões de franceses, que trabalham, estudam, progridem, combatem e até ganham medalhas e campeonatos à sombra da bandeira tricolor e ao som da Marselhesa. E a esses ninguém contesta a legitimidade (exceto quando perdem).
De modo a que vamos assistindo a um crescendo de atitudes anómalas, ditadas por pressões em que a demagogia é o traço dominante, no sentido apregoado de salvaguardar os princípios do laicismo unilateral. Assim se vão lançando umas ferrynadas, neologismo cujo significado é o de ferroadas em nome de Ferry.
Só que os princípios de Jules Ferry eram universais e não, como no caso de Afonso Costa, contra a Igreja Católica em particular. Como uma questão menos referida da obra de Ferry, enquanto ministro da educação, que foi a obrigatoriedade do ensino em francês, acabando praticamente, a prazo, com as línguas locais; aplicando a doutrina do jacobinismo, teve mais sucesso que Franco em Espanha, com os resultados que se vê. Mas a política de educação de Ferry visava o mesmo objetivo, ou seja, o da universalidade das leis.
Na senda das discriminações religiosas ou doutrinariamente orientadas, surge agora ao grande debate sobre o chamado burkini. Neologismo infeliz: burka (também burqa, bourka ou burku´) constitui um adereço feminino, usado em certas áreas da Ásia Central (como no Afeganistão), que cobre as mulheres como um saco, com uma rede na frente que permite ver (mal) os caminhos por onde andam. Nada tem a ver com o chador, simples véu que oculta os cabelos soltos, considerados impúdicos. Mais uma vez, uma questão de prática local, e não de fundamentação religiosa.
Se vasculharmos nas fotos das nossas trisavós e tetravós, nas suas primeiras idas à praia, lá pelos princípios do século XX, teremos uma surpresa: tirando o chapéu de abas largas (que também cobria os cabelos!), usavam um fato de banho algo semelhante ao que agora se chama burkini.
Ora bem: não se tratava de uma questão religiosa, mas de moda. E a moda, conforme a sua definição na matemática, mais propriamente na estatística, é o maior valor numa distribuição de dados; ou seja, aquilo que é registado mais vezes num conjunto de observações.
E a moda evolui, ao ponto de hoje ser correntemente sinónimo de coisa fútil, passageira. Nas praias, da mulher totalmente oculta passou-se ao maillot, cada vez mais reduzido, ao bikini, ao monokini e ao zerokini (que alguns brincalhões chamam trikini: chapéu, óculos de sol e sandálias).
Nada disso foi objeto de debates tão acesos como agora se regista à volta do burkini. Debate inútil, a meu ver: o burkini, a prazo, terá o mesmo destino dos fatos de banho das nossas trisavós; é uma questão de tempo. Representa uma primeira ida à praia, tão vedada para as muçulmanas mais cumpridoras da tradição como foi para as nossas trisavós, que invadiram as ondas do mar, até aí reservadas aos homens, e tudo indica que (felizmente) sem retorno.
A menos que se torne uma questão político-religiosa: nesse caso, a militância encontrará razões que a razão desconhece.
É isso que parece desenhar-se em França, com os últimos desenvolvimentos da legislação aprovada, ou em vias disso. O burkini tornou-se uma questão política, com o seu lado absurdo: uma mulher pode ser presa por usar burkini na praia, mas é improvável que o seja por andar nua…
Confesso que se torna difícil perceber onde está a defesa da moral e dos bons costumes…
Melhor tem andado Angela Merkl (ela própria antiga praticante de nudismo, ao que consta), quando se recusou a proibir o burkini na Alemanha.
Há várias maneiras de lidar com situações indesejáveis: atacando-as de frente, provocando naturalmente a reação contrária; ou torneando a dificuldade, cortando as bases de apoio. Foi assim que os ingleses neutralizaram o nazismo no seu país: em vez de discussões estéreis sobre o que era o nazismo, e se era ilegal ou não, limitaram-se a proibir desfiles políticos com pessoal fardado. E lá se foi a forma mais usual da propaganda nazi…
Portanto, as ferrynadas estão condenadas ao fracasso. Só a real integração das diversas minorias na sociedade francesa resolve o problema, como resolveu ao longo dos séculos que demorou a constituição da França até chegar às fronteiras atuais.
Como sucedeu entre nós com a integração dos cristãos novos, ou com a atual absorção dos nossos muçulmanos: com tolerância e pela ação salutar do tempo.
As iniciativas do atual Presidente da República face às religiões consideradas minoritárias apontam precisamente nesse sentido; e mais não fez que interpretar a postura multisecular dos portugueses, contrariada pela intolerância da Inquisição e pela militância do Estado Novo.
Nuno Santa Clara
Diário de Notícias da Madeira
Domingo, 25 de Setembro de 2016
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