57 salários mínimos

423 mil euros. É quanto António Domingues, novo presidente da Caixa Geral de Depósitos, ganhará por ano. É um número tão grande que ofusca. Domingues receberá num só ano, o mesmo que receberia um português com o salário mínimo, por 57 anos de trabalho. A distância entre os dois salários, é igual à que separa quem o discute. De um lado, há quem veja neste salário uma consequência do mercado, ou seja, para contratar alguém competente, a Caixa tem de praticar salários semelhantes aos outros bancos. Portanto, quem quer competência, tem de pagar para tê-la. Ora, por mais lógico que seja, o argumento parte de um pressuposto errado: quanto maior for o salário, maior é a competência. Para além de não ser verdade, esquece o terramoto que abanou o sistema bancário português. O mesmo sistema que era liderado por presidentes com salários milionários, e que mesmo assim, precisou da ajuda do Estado para não ruir. Ora, procurar no sistema bancário por um equilíbrio entre salário e competência, é procurar no sítio errado. Do outro lado, há quem considere que o salário do Presidente da República, por ser o mais alto cargo público do País, deverá servir de limite a todos os restantes salários pagos pelo Estado. Ou seja, 90% do salário de Marcelo, cerca de 3 mil euros mensais. Uma proposta que tem tanto de justa, como de ingénua. É justa porque impõe um limite, mas é ingénua porque pede a um banqueiro que ganhe como um bancário. Pedir até pode, mas é capaz de não contratar grande banqueiro. É a ideia portuguesa de que o que é público não pode dar lucro, nem deve ser gerido com a eficiência do privado. É também o que explica o estado lastimável a que chegou a Caixa e que custará mais 4,6 mil milhões de euros aos contribuintes. Resgate para um banco privado, recapitalização para o banco público. Na verdade, o salário de Domingues esconde mais do que a sua justificação. O presidente da Caixa não terá que apresentar a sua declaração de rendimentos, não terá que declarar o seu património, nem informar de eventuais incompatibilidades para a função, como é obrigação de todos os gestores públicos. Agora sabemos que, em Portugal, há leis que mudam por causa do salário de uma pessoa. O Governo pode não ter virado a página da austeridade, mas rasgou a da transparência.

JOÃO PAULO MARQUES / PORTUGAL / 02 NOV 2016 / 02:00 H.
Diário de Notícias da Madeira