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Não há ciência sem futuro

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Mensagem por Admin Qua Nov 30, 2016 11:29 am

A precariedade não é apenas um grave problema laboral. Generalizou-se de tal modo que se transformou num problema sistémico que compromete a sustentabilidade das instituições científicas.

Tornou-se consensual nas sociedade modernas encarar a ciência como um setor indispensável para a construção do futuro coletivo dos países. Apesar de significarem diferentes lógicas e processos, palavras como crescimento, progresso, desenvolvimento, sustentabilidade, coesão, entre outras, tornaram-se corriqueiras no léxico das políticas públicas e todas elas partem do adquirido de que a ciência é uma base fundamental para a sua concretização. Ou dito de uma forma categórica, partiu-se do adquirido de que não há bom futuro sem ciência. Por esta razão substancial, muitos países investiram fortemente em infraestruturas científicas, em instituições de ensino superior, em recursos humanos e em carreiras profissionais necessárias para criar quadros contratuais estáveis dotados de horizontes de progressão previsíveis e alcançáveis.

Os sistemas científicos mais consolidados assentaram neste pressuposto óbvio: não só é necessário investir na formação dos cientistas, é também decisivo integrá-los nas instituições e nos centros de investigação. Contudo, desde os anos 90 do século passado este pressuposto foi sendo quebrado. Os governos apostaram (e bem) na massificação do ensino superior e da ciência, refletida na formação crescente de investigadores, mas descuraram (e mal) a vertente da política de emprego, incorporando as agendas de liberalização e de flexibilização laboral e contratual.

Observou-se nos últimos anos uma clara reversão na contração com direitos de investigadores e docentes do ensino superior, optando-se pelo recurso generalizado a modalidades precárias de emprego, como as bolsas de investigação, os contratos a termo (muitos deles a curtíssimo prazo) ou o uso abusivo da figura do professor convidado para assegurar necessidades permanentes. A institucionalização das carreiras deixou de ser uma realidade para gerações consecutivas de investigadores, levando a que a precariedade se incrustasse como regra na constituição e organização dos sistemas científicos.

Em simultâneo inventou-se uma novilíngua associada à figura do cientista, que contribuiu para a legitimação no espaço púbico das políticas de precarização. Embrulhou-se a ciência na retórica deslumbrada da excelência que tem como figura central o investigador empreendedor, protagonista do estrelato mediático-científico. Segundo esta retórica, que se enraizou decisivamente em Portugal com a anterior legislatura, o investigador empreendedor é tão excelente que cria o seu próprio emprego e, como tal, não necessita propriamente de uma carreira, na medida em que esta pode ser contraproducente e um obstáculo à sua ascensão ao mundo das estrelas. Esta conceção descurou até a importância na continuidade do investimento de base na formação de investigadores, considerando que o principal era garantir que alguns poucos chegassem ao topo dos topos.

O tempo novo que se abriu com o presente Governo significa uma oportunidade única para não só reverter estruturalmente os efeitos perversos das políticas anteriores, como a altura certa para dotar a ciência daquilo que realmente ela é: um ofício. Um ofício laborioso que, como tantas outras atividades, precisa de ver regularizada as formas de contratação, enquadrando-as em carreiras estáveis que protejam as pessoas com direitos básicos e fundamentais. E destes o mais fundamental é o direito ao futuro, que na prática significa o direito em não estar indefinidamente a prazo numa precariedade permanente.

A precariedade não afeta só a condição laboral dos investigadores, afeta a sua vida num todo, mas afeta de forma acrescida a vida das instituições e dos centros de investigação, que atualmente estão enredados na gestão do curto prazo que, na medida dos seus maiores ou menores esforços, tenta compensar estas e outras descontinuidades e fragilidades. A precariedade não é apenas um grave problema laboral, ela generalizou-se de tal modo que se transformou num problema sistémico que compromete a sustentabilidade das instituições científicas. No fundo é todo um sistema que se encontra recorrentemente a prazo nas suas mais variadas esferas.

Infelizmente, os sinais recentes prevenientes do atual Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior não são os mais positivos. Quer os atrasos na divulgação dos resultados referentes aos concursos para bolsas de doutoramento e pós-doutoramento, quer a proposta de emprego científico já plasmada em Decreto de Lei (DL 57/2016), revelam que o paradigma anterior está longe de ser rompido. Este DL, apesar de contemplar uma preocupação pela situação dos bolseiros doutorados e de propor a contratação como princípio, apresenta uma solução que fica muito aquém das necessidades existentes e que, na prática, irá institucionalizar a precariedade numa sucessão de contratos a prazo que se poderão suceder por anos a fio.

Por outro lado, ao se afastar e dissociar a contratação de investigadores da sua integração em carreiras estáveis – não resolvendo designadamente a situação de centenas de cientistas que acumulam na sua trajetória profissional vários contratos a termo, que ganharam em concursos internacionais correspondentes ao atual Investigador FCT e anteriormente ao programa Compromisso com a Ciência – incorre-se no erro de perpetuar a precariedade como um fator sistémico.

Este é momento certo para desenvolver políticas verdadeiramente reformadoras que estabilizem o sistema e o dotem de previsibilidade e de certezas de futuro tanto para a instituições, como para os investigadores. A ciência não pode ser a exceção na agenda de recuperação que orienta a atual maioria.

Renato Carmo, Sociólogo
 00:08
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