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Il bugiardo
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Il bugiardo
Pois o nosso Mentiroso criava um mundo só dele, ao sabor da inspiração ou da necessidade do momento. Não era por mal, nem mesmo por calculismo ou por perversas intensões; apenas para adaptar uma realidade que não lhe agradava a outra realidade, que lhe parecia melhor. O resultado, logo se via. Mas, ao contrário dos atuais mentirosos profissionais, a história acabava mal.
Com este nome, foi apresentada em 1750, na cidade de Mântua, Itália, uma comédia da autoria de Carlo Goldoni.
Este autor, nascido em Veneza em 1707 e morto em Paris em 1793 (ano imortalizado por Vítor Hugo), celebrizou-se pelo relançamento da Commedia del´Arte, essa expressão teatral única que marcou o fim da Renascença Italiana.
Goldoni criou o personagem do Bugiardo, o Mentiroso, alguém que mentia compulsivamente, de forma não imoral, mas amoral. O próprio não distinguia a verdade da mentira. Inclusivamente, mudava de nome e personalidade com mais facilidade com que mudava de camisa.
Esta peça tem sido inúmeras vezes encenada e representada, e ainda há pouco tempo tive o prazer de a ver numa excelente representação – feita maioritariamente por amadores, ou melhor, por bons atores que não sobreviveriam vivendo exclusivamente da sua arte.
Pois o nosso Mentiroso criava um mundo só dele, ao sabor da inspiração ou da necessidade do momento. Não era por mal, nem mesmo por calculismo ou por perversas intensões; apenas para adaptar uma realidade que não lhe agradava a outra realidade, que lhe parecia melhor. O resultado, logo se via. Mas, ao contrário dos atuais mentirosos profissionais, a história acabava mal.
Ele não mentia: dizia tratar-se apenas de… “espirituosas invenções”. Belo eufemismo.
Esta peça, bem como tantos outros textos literários, e mais ainda estudos sérios sobre o comportamento, não parecem ter servido de panaceia contra a mentira, continuando esta a ser considerada como uma recurso acessível e tolerável – quando não recomendável. Este recurso às “espirituosa invenções” parece ser norma na publicidade e nas campanhas eleitorais. E não é por acaso que há quem defenda que se pode vender um candidato como se fosse um sabonete.
Winston Churchill, com o seu conhecido espírito acerado, disse um dia que nunca se mente tanto como antes das eleições, durante a guerra e depois da caça. Antes das eleições e depois da caça, são coisas aceites como uma fatalidade pelos povos resignados, e ninguém leva a mal. Durante a guerra, faz parte da manobra de enganar o inimigo e de moralizar o nosso lado; logo, não é só aceite, como aplaudida (pelo menos pelo vencedor).
E depois das eleições?
O mesmo Churchill, na sua presciência sobre o que seria a Alemanha de Adolf Hitler, escreveu que bastaria alguém ir à livraria mais próxima e comprar um exemplar do Mein Kampf para saber o que eram as intensões do Führer; a maioria do seu partido (e não só) entendeu que se tratava de mera propaganda eleitoral.
Também aqui não se aprendeu nada: também houve quem visse no discurso errático de Donald Trump mera campanha eleitoral.
E assim nos vemos confrontados com um grave dilema: devemos condenar o novo Presidente por querer cumprir o que prometeu, ou a grande parte do Partido Republicano por pensar que se tratava de mera propaganda eleitoral?
Certo é que as eleições foram há meses, mas o tom das intervenções de Trump não mudou. Até os meios de comunicação por ele empregues na difusão de ideias e intensões são mais próprios de uma campanha eleitoral: dir-se-ia que o país mais forte de Mundo é governado através do twitter. E a crise dos mísseis norte-coreanos foi gerida através da rede comercial da Internet, relegando as quebras de segurança de Hillary Clinton para o rol dos pecadilhos.
Mas questão das “espirituosas invenções” permanece, agora chamadas “factos alternativos”; coisa estranha, uma vez que facto (ou fato), por definição) é algo real e que pode ser comprovado. O mais recente e mediático foi o atentado da Suécia, que simplesmente não existiu. Reagiram os suecos, e bem: ou o Presidente sabia que se ia dar um atentado, e não os avisou; ou inventou um atentado, e não se brinca com coisas sérias.
Não está em causa o cumprimento de promessas feitas durante o processo eleitoral. Houve mesmo, cá em Portugal, um Presidente que foi censurado por ser “cobrador de promessas eleitorais”. Está, sim, a forma como se distorcem ou criam factos, de forma a criar um ambiente propício a cumprir essas promessas, ou a esquecê-las.
E isto de mentir está a tomar foros de epidemia, nas altas esferas americanas. O general Michael Flynn, nomeado Conselheiro de Segurança Nacional, manteve conversações com as autoridades russas antes da tomada de posse de Trump – iniciativa que negou e escamoteou até ao Vice-Presidente. Acabou demitido, ao fim de um mês de mandato.
E assim se obteve o primeiro “impossível” – senadores democratas e republicanos uniram-se para garantir a transparência sobre este assunto.
Mas, pelo menos, permitiu a Donald Trump usar a sua frase favorita: you are fired!
O hábito de o Presidente fazer afirmações que depois desmente (por vezes no próprio dia), ou de deixar aos seus colaboradores o trabalho de o desmentir, numa tarefa que se pode classificar como de “limitação de avarias” (na gíria naval), começa a fazer parte do quotidiano deste planeta.
Não me vou debruçar sobre os aspetos psicológicos da questão; correm já rios de tinta, e milhões de bytes, à volta das particularidades da mente do recém-empossado Presidente dos Estados Unidos da América.
Numa postura mais clássica, poderia remeter-me a Goldoni e ao seu Bugiardo. Mas Donald Trump não poderia ter sido criado pelo grande autor da Commedia dell´Arte. O Mentiroso foi concebido para fazer crítica social, e sobretudo para fazer rir as plateias. Trump não faz rir ninguém do universo dos países democráticos, onde a separação de poderes, o respeito pelos direitos humanos, o primado das normas constitucionais e mesmo a boa educação são considerados atributos de quem governa.
Ou seja, nem pode ser integrado no rol dos bons artistas.
Nuno Santa Clara
Barreiro
02.03.2017 - 00:33
Rostos
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