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Interesse público, interesse púbico
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Interesse público, interesse púbico
Há 1500 milhões de anos houve uma imensa explosão de luz na Terra. O mundo foi inundado por um manto de claridade extrema que obrigou a natureza a adaptar-se a esta luminosidade sem precedentes. Este choque desencadeou um processo de evolução biológica com vítimas e ganhadores. Houve organismos que sucumbiram perante a inevitabilidade do impacto. Mas também houve quem se adaptasse às novas condições de vida, abrindo um novo capítulo na evolução das diferentes espécies.
Esta teoria - melhor: esta hipótese científica - ficou conhecida como a explosão Cambriana e serviu ao filósofo Daniel Dennett para estabelecer um paralelo com os dias que estamos hoje a viver desde o surgimento da internet e a sua massificação planetária. A privacidade tornou-se um conceito em perda acelerada face à intrusão permanente deste feixe de luz digital. Nada escapa a este foco. Absolutamente nada consegue proteger-se deste raio tecnológico que expõe todas as dinâmicas pessoais a uma poderosa e continuada intrusão em todas as áreas concebíveis da atividade humana.
Quando eu saio de casa, o telemóvel diz-me, sem eu perguntar ou pesquisar, quantos minutos exatos vou demorar a chegar ao trabalho e acerta quase sempre - os satélites da Google veem tudo e medem tudo lá de cima. A web sabe onde vou, conhece as minhas rotinas, apesar de ainda não antecipar os meus desvios repentinos; não faltará muito para que a inteligência artificial também chegue aí, se é que já não chegou. O casamento, a vida no escritório, as minhas decisões profissionais, tudo isso fica registado e recria um colorido e extenso mapa comportamental de acesso relativamente fácil por terceiros detentores de alguma destreza informática.
Acontece o mesmo com as instituições. Os sms de Mário Centeno a António Domingues, os e-mails que eles trocaram, tudo isto forma uma bolsa de conhecimento (acessível) muito específico e concreto que não tem apenas consequências positivas. Esta transparência responsabiliza, é verdade, e esse é o lado francamente bom desta revolução digital. Sabemos que estamos a ser observados, embora às vezes o esqueçamos, e este controlo pode dissuadir, como acontece com as câmaras instaladas nos corredores dos supermercados que convidam os larápios a ir passear os dedos para outras bandas menos expostas.
O problema é que esta omnipresença e omnisciência do novo semideus digital está a provocar uma erosão acelerada das instituições democráticas e da membrana - é a palavra que Daniel Dennett usa - que até agora protegia o funcionamento destes pilares que sustentam o nosso modo de vida em comunidade. Quando se rompe a membrana que protege a intimidade dos sistemas, a boa e a má intimidade, algo a que antes só "Deus" tinha acesso, transfere-se o poder de julgar para as mãos de todos. O que resulta é só castigo e nenhum perdão.
Há 1500 anos, o manto de luz matou um grupo extenso de organismos. Na atualidade, o grande irmão digital vasculha e produz um efeito análogo. Escrutina e interfere em todas as comunicações e trocas, embora depois a sua revelação e propagação dependam da escolha humana: revelo isto, omito aquilo, calo tudo, guardo para mais tarde lembrar ou esqueço e apago?
Não se trata de advogar a opacidade, mas tão-só de termos forçosamente de aceitar que o grau máximo de transparência é tão nocivo como a opacidade anterior. A tomada de decisões não segue um caminho imaculado. Percorre trilhos complexos, implica negociações, leva a exageros e recuos, abusos, evidentemente reflete a ambiguidade do ser humano. Ou seja, evidencia a divergência de interesses, o recurso à mentira, ao engodo ou à omissão deliberada.
Havendo um patamar de seriedade que tem mesmo de ser cumprido e fiscalizado quando os assuntos são de interesse público - é também desse sentido de exigência que se constrói a vida em democracia -, o excesso de ingerência, a divulgação de todos os atos e gestos, por mais informais que eles sejam, acabam por rasgar a tal membrana ao ponto de estilhaçar a confiança no sistema, nas instituições que o regem e nos protagonistas (os políticos) que a medeiam por escolha coletiva.
Não há homens perfeitos e ainda bem. E há muito patife a mandar nas nossas vidas. Mas tem de haver limites ao striptease permanente a que estamos a sujeitar a nossa vida em democracia. Exigir mais e sempre mais, sem perceber o que está em causa, como se o nudismo informativo fosse sacrossanto e impoluto, como se fosse um valor absoluto, significa não compreender que este dilúvio intrusivo não é seguramente a melhor resposta para cultivar uma sociedade menos desigual e mais justa, menos demagógica e mais responsável. A consequência está à vista de todos: Donald Trump, o holandês Geert Wilders e Marine Le Pen são baratas que se reproduzem e alastram através deste radical populismo digital.
O interesse público não é o mesmo que interesse púbico. Comecemos por fazer esta distinção. O trigo do joio.
09 DE MARÇO DE 2017
00:04
André Macedo
Diário de Notícias
Esta teoria - melhor: esta hipótese científica - ficou conhecida como a explosão Cambriana e serviu ao filósofo Daniel Dennett para estabelecer um paralelo com os dias que estamos hoje a viver desde o surgimento da internet e a sua massificação planetária. A privacidade tornou-se um conceito em perda acelerada face à intrusão permanente deste feixe de luz digital. Nada escapa a este foco. Absolutamente nada consegue proteger-se deste raio tecnológico que expõe todas as dinâmicas pessoais a uma poderosa e continuada intrusão em todas as áreas concebíveis da atividade humana.
Quando eu saio de casa, o telemóvel diz-me, sem eu perguntar ou pesquisar, quantos minutos exatos vou demorar a chegar ao trabalho e acerta quase sempre - os satélites da Google veem tudo e medem tudo lá de cima. A web sabe onde vou, conhece as minhas rotinas, apesar de ainda não antecipar os meus desvios repentinos; não faltará muito para que a inteligência artificial também chegue aí, se é que já não chegou. O casamento, a vida no escritório, as minhas decisões profissionais, tudo isso fica registado e recria um colorido e extenso mapa comportamental de acesso relativamente fácil por terceiros detentores de alguma destreza informática.
Acontece o mesmo com as instituições. Os sms de Mário Centeno a António Domingues, os e-mails que eles trocaram, tudo isto forma uma bolsa de conhecimento (acessível) muito específico e concreto que não tem apenas consequências positivas. Esta transparência responsabiliza, é verdade, e esse é o lado francamente bom desta revolução digital. Sabemos que estamos a ser observados, embora às vezes o esqueçamos, e este controlo pode dissuadir, como acontece com as câmaras instaladas nos corredores dos supermercados que convidam os larápios a ir passear os dedos para outras bandas menos expostas.
O problema é que esta omnipresença e omnisciência do novo semideus digital está a provocar uma erosão acelerada das instituições democráticas e da membrana - é a palavra que Daniel Dennett usa - que até agora protegia o funcionamento destes pilares que sustentam o nosso modo de vida em comunidade. Quando se rompe a membrana que protege a intimidade dos sistemas, a boa e a má intimidade, algo a que antes só "Deus" tinha acesso, transfere-se o poder de julgar para as mãos de todos. O que resulta é só castigo e nenhum perdão.
Há 1500 anos, o manto de luz matou um grupo extenso de organismos. Na atualidade, o grande irmão digital vasculha e produz um efeito análogo. Escrutina e interfere em todas as comunicações e trocas, embora depois a sua revelação e propagação dependam da escolha humana: revelo isto, omito aquilo, calo tudo, guardo para mais tarde lembrar ou esqueço e apago?
Não se trata de advogar a opacidade, mas tão-só de termos forçosamente de aceitar que o grau máximo de transparência é tão nocivo como a opacidade anterior. A tomada de decisões não segue um caminho imaculado. Percorre trilhos complexos, implica negociações, leva a exageros e recuos, abusos, evidentemente reflete a ambiguidade do ser humano. Ou seja, evidencia a divergência de interesses, o recurso à mentira, ao engodo ou à omissão deliberada.
Havendo um patamar de seriedade que tem mesmo de ser cumprido e fiscalizado quando os assuntos são de interesse público - é também desse sentido de exigência que se constrói a vida em democracia -, o excesso de ingerência, a divulgação de todos os atos e gestos, por mais informais que eles sejam, acabam por rasgar a tal membrana ao ponto de estilhaçar a confiança no sistema, nas instituições que o regem e nos protagonistas (os políticos) que a medeiam por escolha coletiva.
Não há homens perfeitos e ainda bem. E há muito patife a mandar nas nossas vidas. Mas tem de haver limites ao striptease permanente a que estamos a sujeitar a nossa vida em democracia. Exigir mais e sempre mais, sem perceber o que está em causa, como se o nudismo informativo fosse sacrossanto e impoluto, como se fosse um valor absoluto, significa não compreender que este dilúvio intrusivo não é seguramente a melhor resposta para cultivar uma sociedade menos desigual e mais justa, menos demagógica e mais responsável. A consequência está à vista de todos: Donald Trump, o holandês Geert Wilders e Marine Le Pen são baratas que se reproduzem e alastram através deste radical populismo digital.
O interesse público não é o mesmo que interesse púbico. Comecemos por fazer esta distinção. O trigo do joio.
09 DE MARÇO DE 2017
00:04
André Macedo
Diário de Notícias
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