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Neruda: a imoralidade de um comunista burguês
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Neruda: a imoralidade de um comunista burguês
Está agora nos cinemas portugueses “Neruda”, um filme de Pablo Larraín, o mesmo realizador de “Jackie”. Além de ser um bom e criativo biopic sobre o poeta, senador e comunista chileno, “Neruda” é também uma violenta bofetada no comunismo e, em particular, na tendência para a beatificação dos heróis da causa revolucionária. Basta pensa em Fidel Castro e Che Guevara.
Só que, se, por um lado, “Neruda” não é um filme que enalteça a luta de um herói santificado da causa comunista, por outro lado, também não é um filme sobre a imoralidade e boémia da vida de um poeta. Neruda é, sobretudo, um filme sobre a integridade de um comunista. É que Larraín não retrata apenas cenas da vida boémia de um artista, vaidoso e frívolo, que bebe champanhe e vive uma vida de deboche, de orgia em orgia, ao lado da sua mulher aristocrata, Delia (Mercedes Morán). Ainda assim, esta descrição do artista esquerdista é fundamental na personagem que Larraín nos apresenta: é nos intervalos do deboche que, das trincheiras da sua superioridade intelectual (e moral), Neruda lidera espiritualmente a revolução e os trabalhadores, encantando e inspirando com declamações de poesia sobre o sofrimento do povo, mobilizando as massas através da função simbólica da sua escrita e da sua existência que, naturalmente, se situa num pedestal, acima do comum dos mortais. Como se uma revolução se alimentasse de belas palavras; como se o combate à pobreza e a luta pela justiça social se construíssem sobre lirismos.
Pablo Larraín filma sobretudo a imoralidade e a hipocrisia do comunista burguês que vive segundo o lema “olha para o que eu digo e não olhes para o que eu faço” e apresenta-nos um Neruda senatorial, com todo o estatuto de excecionalidade e sobranceria em relação aos seus camaradas de luta que a palavra “senador” concede, mas que dificilmente se compreende à luz dos axiomas comunistas; um senador cuja consciência convive com a sua altivez de forma tranquila, acomodado e resignado à sua condição moral e artística, superior, mesmo quando confrontado por Silvia, militante desde os 14 anos que, depois de ultrapassar as consternações naturais de quem está na presença de um ídolo, de um deus, acusa Neruda de ser um comunista especial e pergunta: “Quando chegar o comunismo, todos serão iguais a ele ou a mim?” Sem pejo, ligeiramente indignado com a ousadia da camarada, o senador responde que todos serão iguais a si; um senador que, num café parisiense, de peito túrgido, bebendo uma garrafa de bom vinho e rodeado de jornalistas que o questionam com a mesma curiosidade e fascínio que uma fã manifesta junto de uma estrela pop, fala dos homens do seu país que estão presos, que são torturados e exilados. Neruda foi apenas um deles, é certo. Ainda assim, um senador, um poeta, um artista e, naturalmente, um privilegiado. Um hipócrita, portanto.
Blogger
Escreve à terça-feira
21/03/2017
Graça Canto Moniz
opiniao@newsplex.pt
Jornal i
Só que, se, por um lado, “Neruda” não é um filme que enalteça a luta de um herói santificado da causa comunista, por outro lado, também não é um filme sobre a imoralidade e boémia da vida de um poeta. Neruda é, sobretudo, um filme sobre a integridade de um comunista. É que Larraín não retrata apenas cenas da vida boémia de um artista, vaidoso e frívolo, que bebe champanhe e vive uma vida de deboche, de orgia em orgia, ao lado da sua mulher aristocrata, Delia (Mercedes Morán). Ainda assim, esta descrição do artista esquerdista é fundamental na personagem que Larraín nos apresenta: é nos intervalos do deboche que, das trincheiras da sua superioridade intelectual (e moral), Neruda lidera espiritualmente a revolução e os trabalhadores, encantando e inspirando com declamações de poesia sobre o sofrimento do povo, mobilizando as massas através da função simbólica da sua escrita e da sua existência que, naturalmente, se situa num pedestal, acima do comum dos mortais. Como se uma revolução se alimentasse de belas palavras; como se o combate à pobreza e a luta pela justiça social se construíssem sobre lirismos.
Pablo Larraín filma sobretudo a imoralidade e a hipocrisia do comunista burguês que vive segundo o lema “olha para o que eu digo e não olhes para o que eu faço” e apresenta-nos um Neruda senatorial, com todo o estatuto de excecionalidade e sobranceria em relação aos seus camaradas de luta que a palavra “senador” concede, mas que dificilmente se compreende à luz dos axiomas comunistas; um senador cuja consciência convive com a sua altivez de forma tranquila, acomodado e resignado à sua condição moral e artística, superior, mesmo quando confrontado por Silvia, militante desde os 14 anos que, depois de ultrapassar as consternações naturais de quem está na presença de um ídolo, de um deus, acusa Neruda de ser um comunista especial e pergunta: “Quando chegar o comunismo, todos serão iguais a ele ou a mim?” Sem pejo, ligeiramente indignado com a ousadia da camarada, o senador responde que todos serão iguais a si; um senador que, num café parisiense, de peito túrgido, bebendo uma garrafa de bom vinho e rodeado de jornalistas que o questionam com a mesma curiosidade e fascínio que uma fã manifesta junto de uma estrela pop, fala dos homens do seu país que estão presos, que são torturados e exilados. Neruda foi apenas um deles, é certo. Ainda assim, um senador, um poeta, um artista e, naturalmente, um privilegiado. Um hipócrita, portanto.
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Graça Canto Moniz
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