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Os budistas tibetanos chegaram à pequena aldeia alentejana de Santa Susana
Olhar Sines no Futuro :: Categoria :: Portugal :: Alentejo :: Litoral Alentejano
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Os budistas tibetanos chegaram à pequena aldeia alentejana de Santa Susana
O novo centro no Alentejo vai ser alargado para permitir retiros prolongados e incluir um templo de raiz MIGUEL MANSO
Meditar ajuda as pessoas a "ter menos emoções conflituosas", diz Lama Gyurme, director do Centro de Estudos Tibetanos Pendê Ling no Estoril MIGUEL MANSO
O centro de retiros abriu portas neste sábado, a inexperientes e conhecedores. A ideia é também “dinamizar” a comunidade, ir a escolas, “dar a conhecer o budismo tibetano”. Os habitantes da aldeia estão curiosos e entusiasmados com os vizinhos de “saias” e “vestidos vermelhos”.
Num dia de Agosto, à hora do almoço, não se vê quase ninguém na aldeia de Santa Susana, no Alentejo. Não vive ali muita gente. Maria Rosa Pinto, 73 anos, sabe-o, porque à noite, quando não consegue dormir, põe-se a contar as pessoas da terra.
É uma forma de adormecer – em vez de contar carneiros, põe-se “no pensamento a contar” quem lá mora: “Não conto os que estão fora. Conto mais ou menos 150 pessoas, viúvas são 15. Mas às vezes perco-me”, ri-se. Adormece antes de chegar aos cerca de 350 habitantes registados nos Censos.
No concelho de Alcácer do Sal, Santa Susana é a aldeia mais próxima, a cerca de quatro quilómetros, do centro de retiros budistas tibetanos que começou a ser inaugurado neste sábado. Os eventos previstos incluem cerimónias, palestras e jantares, ao longo de duas semanas. Vai chamar-se Thubten Phuntsog Gephel Ling, que significa “o lugar onde a virtude dos ensinamentos de Buda se expande”.
Maria Rosa Pinto já ouviu falar do centro e já viu os budistas por ali. Está sentada na esplanada do “café do Porfírio”, com Florindo António, 78 anos, Ana Maria do Carmo, 58, e Lisete Cardim, 61. Do grupo, só Florindo António não ouviu falar de centro, de retiros nem de budistas. “São aqueles com aquelas saias”, explicam-lhe as amigas.
Elas também não sabem bem o que vai ser o centro, mas estão curiosas e já ouviram falar de uma “grande festa”. “Começaram a dizer que vinham aí os budistas, vestidos de vermelho, mas não sei o que vão para lá fazer, qual é a religião deles”, diz Ana Maria do Carmo. Lisete Cardim pergunta-se: “São só homens ou também há mulheres?” Estão intrigadas, mas satisfeitas com a nova vizinhança. Das vezes em que os viram ir buscar comida a um outro café, o do Sr. Coelho, acharam logo que era boa gente. “Não fazem mal a ninguém.”
Sentado de pernas cruzadas na sala principal do centro, Lama Gyurme conta bem-disposto que, nesse café do Sr. Coelho, um habitante lhe perguntou: “Olhe lá, por que é que anda vestido de mulher?”. Explicou-lhe que era budista, falou-lhe de Dalai Lama. “Ah, esse é um gajo porreiro”, respondeu-lhe o morador.
Com uma longa barba, Lama Gyurme sabe que não passa despercebido quando vai à aldeia. Veste-se quase sempre de tanjur, as tais saias, de zen, um manto bordeaux e branco cru enrolado à volta do corpo, e por baixo uma t-shirt sem mangas – o facto de não ter mangas significa que vem em paz, é uma tradição ancorada num tempo em que se escondiam armas debaixo da roupa. Ao pescoço, traz um trengwa, um rosário. Lama Gyurme é o nome espiritual de Pedro Paiva, 46 anos – mas Pedro é um nome que já só ouve quando a mãe o visita. Lama significa professor, mentor espiritual.
Pedro Paiva chegou a ser baptizado, na tradição católica. Mas desde os 16 anos que se interessa pelo budismo. Estudou, viajou. Com 20 anos já ia a colónias de lamas na Europa. Nos Estados Unidos, fez um curso de teologia.
Antes de se mudar para o Alentejo, vivia no Estoril, onde fica o Centro de Estudos Tibetanos Pendê Ling, do qual é director e que deu origem a este projecto no Alentejo. Lama Gyurme, que trabalha na área das terapias alternativas, vai ser um dos cinco residentes do novo centro. A mulher, budista, também. Não fizeram votos de celibato, obrigatórios só para quem segue a via monástica. Lama Gyurme tem dois filhos, mas já são crescidos, não vão para o centro.
Este centro não é o único a fazer retiros budistas em Portugal mas, com cerca de 100 hectares, Lama Gyurme acredita que será um dos maiores. Mesmo na Europa, não conhece muitos com uma área tão grande. Apesar de haver outros centros de budismo tibetano em Portugal, muitas vezes o que acontece é que os retiros decorrem em espaços arrendados para o efeito.
Empossamentos
A inauguração começou neste sábado e vai decorrer até 27 de Setembro. Esperam-se palestras, ensinamentos e cerimónias que se chamam “empossamentos” e são especificamente para budistas: “É a transmissão de ensinamentos através de práticas meditativas em que o mestre capacita e empossa os discípulos para uma determinada prática e o respectivo resultado”, explica Lama Gyurme. O acontecimento trará ainda pela primeira vez a Portugal Khochhen Rinpoche. Contemporâneo de Dalai Lama, fugiu para a Índia em 1959 e é um dos mestres tibetanos vivos mais antigos da tradição Nyingma, uma das escolas tibetanas.
Durante estes dias, o centro acolherá, estima-se, entre 50 a 70 pessoas em permanência, isto é, durante todos os dias do evento. Algumas ficarão nas casas, a maior parte em tendas. Mas o número deve ir para mais do dobro, contando com outras visitas, que não permaneçam nos dias todos. São esperados alguns curiosos, mas a grande maioria será constituída de budistas: metade portugueses, metade estrangeiros. Ao todo, pelo centro, deverão passar, na totalidade do evento, cerca de 200 budistas de todo o mundo, entre tibetanos, refugiados tibetanos na Europa e nos Estados Unidos e nepaleses.
Lama Guyrme prevê que, quando estiver a funcionar, o centro realize cerca de quatro retiros por ano. Serão abertos a pessoas de todas as nacionalidades, credos ou sem qualquer crença religiosa: “Desde que as pessoas estejam interessadas e respeitem alguns princípios de silêncio, de tranquilidade, de paz, são bem-vindas.” Até porque, frisa, qualquer pessoa pode “colher benefícios” dos ensinamentos. Trabalhar a concentração é apenas um exemplo muito prático, mas não o único. Nos retiros, nos quais não é permitido usar drogas, álcool ou tabaco, será cobrado um preço pelo alojamento e pelas refeições, mas ninguém ficará excluído por falta de dinheiro, garante Lama Gyurme.
Neste momento, o centro tem sete casas – que já existiam e nas quais foram feitas apenas pequenas obras – e 30 camas. Mas os planos incluem também a construção de uma nova estrutura para acolher retiros prolongados, de três meses a três anos, e ainda um templo de raiz. “No templo novo caberão cerca de 500 pessoas. Vamos trazer artesãos tibetanos ou nepaleses, para que seja construído segundo o simbolismo e a arquitectura sagrada, para criar harmonia energética”, explica Lama Gyurme.
Para já, os rituais de meditação acontecem num templo provisório. Lá dentro, para onde se deve entrar sem sapatos, há panos com pinturas tradicionais, um buda, oferendas que simbolizam qualidades interiores, incenso, almofadas, um búzio para fazer o chamamento na hora das práticas.
Os responsáveis pelo centro do Estoril começaram a namorar o espaço, com o terreno e as casas, há cerca de um ano. O financiamento do projecto partiu, segundo Lama Gyurme, “de mestres estrangeiros e de particulares”. Só a construção do templo novo, das instalações para os retiros prolongados e ainda as pequenas obras que fizeram nas casas já existentes rondam o milhão de euros.
Comunidades em volta
A ideia é que, no futuro, os moradores do centro contribuam para “dinamizar” as comunidades em volta. Tencionam fazer voluntariado em centros de dia, escolas, dar aulas de ioga, praticar medicina alternativa. O templo que será construído de raiz também estará aberto a visitas. Querem “dar a conhecer o budismo tibetano”.
Lama Gyurme acredita que o centro será frequentado tanto por budistas portugueses, como estrangeiros. Apesar de os dados dos Censos não incluírem, na parte da religião, o número de budistas, Paulo Borges, da direcção da União Budista Portuguesa (e do Partido pelos Animais e pela Natureza), estima que em Portugal haverá 20 mil budistas portugueses praticantes. “Destes, entre 60 a 70% serão budistas tibetanos, é a comunidade mais forte. Mas não há um estudo com números exactos”, ressalva.
Lama Guyrme não está preocupado em saber se há mais ou menos budistas em Portugal, se o número tem ou não aumentado: “A questão dos seguidores não me preocupa. Mesmo considerando o budismo uma religião, não é uma religião prosélita, não tem missionarismo”, justifica.
Ainda assim, admite que o interesse pelo budismo “está a crescer”. E defende que a “boa relação” com a ciência é uma das razões desse interesse. Além de ser uma prática focada “no desenvolvimento pessoal e no autoconhecimento”, os budistas têm-se debruçado sobre “as questões da mente, da física, das neurociências”. Lama Guyrme dá como exemplo o Instituto Life and Mind, na Índia, que com o apoio de Dalai Lama, tem promovido “o encontro entre mestres budistas e cientistas” em torno destas áreas.
Filosofia ou religião?
Mas o budismo é ou não uma religião? “Depende das pessoas. Sem dúvida que para alguns budistas é uma religião, para outros uma filosofia e para outros uma ciência”, diz Lama Gyurme. Mesmo admitindo que “cruza lógica com experiência mística”, para este mestre é uma ciência: “No universo, tudo depende de causas e condições. O sofrimento e a felicidade também. O budismo quer libertar-nos das causas do sofrimento.”
Já para Carla Paiva, 53 anos, que também vai viver para o centro, quando muito, é uma filosofia de vida, não uma religião, até porque os budistas não acreditam num deus criador.
Antes de ser budista, há pelo menos 10 anos, Carla Paiva era fotojornalista. Agora dá aulas de ioga e dedica-se a terapias alternativas. A mudança aconteceu depois de um acidente de trabalho. Andava a fotografar pegadas de dinossauro na Lourinhã, caiu e fracturou o pulso. Afastada do trabalho por uns tempos, acabou por deixar o jornal. “Estava na altura de mudar de vida, foi uma oportunidade para o fazer.”
Lama Guyrme e Carla Paiva estão entusiasmados com a vida sossegada que os espera no centro. “Uma das riquezas ocultas da nossa época é tempo. Quando apareceram os primeiros computadores, se demorassem meia hora a arrancar ninguém se importava. Hoje não se pode demorar 30 segundos para entrar na Internet… Há uma atitude mental de dependência dessa rapidez. O tipo de vida hoje em dia é o correr para não cair”, nota Lama Gyurme.
Carla Paiva ressalva, no entanto, que apesar de haver uma ligação entre budismo, natureza e uma certa tranquilidade, pode ser-se budista na cidade, com os ritmos de vida dos grandes centros. Até porque o fundamental na rotina de um budista é meditar e ter uma conduta que expresse essa meditação. “O sinal de se haver estudado o dharma, os ensinamentos de Buda, é ter uma conduta gentil. O sinal de se ter meditado é ter menos emoções conflituosas”, explica Lama Guyrme.
Entre os vários tipos de budismo existentes – chinês, japonês, tailandês, entre outros –, o tibetano distingue-se por, entre outras razões, incluir três vertentes ou caminhos: Hinayana (que significa pequeno veículo), Mahayana (grande veículo) e Tantrayana (veículo do diamante). Nos outros budismos, acrescenta este mestre, privilegia-se um deles. “Mas a multiplicidade de budismos é uma riqueza. Claro que há diferenças entre todos, mas na essência, na essência, todos levam ao mesmo resultado”. A menos sofrimento? Sim, diz Carla Paiva.
Lama Guyrme explica porquê: “Há muitas poluições mentais, emoções conflituosas, tendências e hábitos que nos impedem de ver a nossa verdadeira natureza. São as causas do sofrimento.” E como se ultrapassam? Através da “visão”, que é a compreensão, pela lógica, das causas do sofrimento; depois, através da “meditação”, em que se integra essa visão numa experiência; e por fim através da “conduta”, em que se integra essa experiência no dia-a-dia. Traduzindo por imagens, garante que o budismo ensina a limpar a “sujidade do vidro” ou a ver, num dia encoberto, “para lá das nuvens”.
MARIA JOÃO LOPES 14/09/2014 - 08:43
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