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O princípio da ignorância
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O princípio da ignorância
Não sabendo, como posso vir a saber? Não conhecendo, de que modo posso ter acesso ao conhecimento? O princípio da ignorância é um impulsionador pragmático.
Interrogado sobre um tema, por mais especializado que este seja, um político profissional em regra nunca admitirá que não sabe a resposta, acabando por emitir a mais banal, obtusa e desapropriada opinião. O mesmo acontece com os comentadores profissionais dos media que, na posse de um menu de informações generalistas e numa atitude que pretende ultrapassar o nível rasteiro da opinião, assumem, mais pela atitude corporal ou pela ensaiada colocação de voz, a pretensão de um saber definitivo – e redundante, em particular quando se trata de previsões.
Passarão poucas horas até que dos referidos saberes futurologistas ninguém se lembre mais; porém, o facto de terem sido apresentados com a pose devida permitirá que quem o fez continue pronunciando-se com uma sapiência abrangente de tudo sobre o nada.
Até com professores isto sucede. Raramente admitem não terem para dar uma resposta adequada, contextualizada, precisa à pergunta inesperada do estudante. Esta atitude não é específica deste tempo, embora alguns dos seus aspectos o sejam: a pressão sobre a necessidade de acumular informação, associada à pressão para apresentar a resposta imediata, associada à ideia de que o recurso a uma prótese qualquer por parte do cibernauta contemporâneo o transforma, através de um mero clic ou de um simples toque num ecrã, no detentor de todas as respostas necessárias.
Curiosamente, nestas situações mencionadas é sempre negado o princípio da ignorância. Ora, esse princípio não tem necessariamente nada a ver com uma eventual e tonta apologia do analfabetismo, da iliteracia ou, sequer, da ataraxia formulada por Pessoa em certos versos de desespero. Pelo contrário, o princípio da ignorância é um princípio activo, uma força em potência ainda que pareça não exisitir; mas aí está latente parecendo infinitamente pequena mas inversamente proporcional a tudo o que pode fazer existir.
Na sua fórmula metafísica, o princípio da ignorância é, na verdade, um impulsionador pragmático: não sabendo, como posso vir a saber? Não conhecendo, de que modo posso ter acesso ao conhecimento? Todos os processos de conhecimento resultaram do reconhecimento deste mesmo princípio: a Enciclopédia d’Alembert ou a Einaudi, a Biblioteca Britânica ou o cinema de Béla Tarr, a tese dos fractais... resultaram da tomada de consciência, tantas vezes apenas sob a forma de um lampejo, de se estar num estado de ignorância. A partir desse momento de reconhecimento da ignorância não se passa simplesmente a estar na posse de um conjunto de informações, muito menos se passa ao conhecimento absoluto (se é que ele existe); a partir desse momento inicia-se um processo infindável de colocação de enigmas e procura de soluções, a que se seguem outros enigmas e outras soluções, e assim sucessivamente.
As enciclopédias e os dicionários, tidos como repositórios do saber organizado e disciplinado, são de facto formas inacabadas que continuamente reclamam ser preciso regressar ao princípio da ignorância. Este, pela sua natureza, manifesta-se nos pequenos momentos experienciais: frente a um glaciar, no meio do deserto ou da imensidão de um oceano a sensação empírica de pequenez produz em nós a sensação de uma gigantesca ignorância. Dir-se-á que estas são experiências limite, experiências existencialistas no sentido psicológico. Ainda assim, este princípio pode também activar-se no confronto com uma obra literária cujo horizonte de sentidos nos aparece como inalcançável ou até infinito, ou perante o teor de uma nova tese científica ou os traços de um simples desenho que nos remeta para um tempo anterior e em que a sensação de saber aparece como resultado (equívoco) do progresso linear. Também surge no instante da paixão em que o desejo do outro que é um desejo do esclarecimento absoluto do mistério do outro – e por isso nos confina a um lugar de existência parca e pequena. Em todos os casos, à angústia do não saber corresponde a esperança de vir a saber.
ANTÓNIO PINTO RIBEIRO 26/09/2014 - 03:56
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