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Ciências sociais e humanidades: uma estratégia pouco inteligente
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Ciências sociais e humanidades: uma estratégia pouco inteligente
É triste e tacanho que não se perceba que, numa democracia ainda recente, o contributo das ciências sociais e das humanidades ainda não seja percebido como absolutamente prioritário para o desenvolvimento da economia e para a qualificação e valorização da população.
Todos os indicadores de produtividade e desempenho científico mostram que, nas últimas décadas, a comunidade científica atingiu níveis notáveis de produção em publicações, qualificações e internacionalização. A corrida está longe de estar ganha e o investimento deve continuar, mas os números são impressionantes, sobretudo tendo em conta que, em alguns domínios científicos, a investigação em Portugal só se começou realmente a desenvolver nos últimos 40 anos. Em algumas das áreas das ciências sociais e das humanidades, simplesmente não havia qualquer instrumento de financiamento e, em muitas situações, o contexto político não admitia que houvesse investigação. Por este mesmo motivo, é impressionante como, em apenas 40 anos, houve grupos de investigadores que conseguiram atingir níveis de produção, impacto e reconhecimento entre pares que os colocaram entre os melhores a nível mundial.
Dois fatores foram cruciais para estes resultados: confiança no sistema e investimento. A questão do investimento e financiamento é óbvia. Nada cresce sem investimento.
A confiança traduz-se, desde logo, em depositar na comunidade científica a responsabilidade de identificar os temas que definem a agenda de investigação. É aos investigadores, porque são os especialistas nas áreas e porque é neles que a própria sociedade investe no cumprimento desta missão, que compete olhar para o mundo e perceber quais são as questões relevantes. Formular as perguntas é o ponto de partida crucial para que a ciência tenha sucesso. Se as perguntas forem impostas por outros, externos à própria comunidade científica, todo o trabalho científico pode estar a ser desvirtuado e corre o risco de ser pervertido. Durante anos, os cientistas sociais e os investigadores em humanidades tiveram a liberdade de colocar as questões relevantes e definir a agenda de investigação, sendo a relevância e pertinência dessas questões avaliada por pares. Por isso mesmo, essas áreas progrediram.
Este paradigma corre o risco de se alterar radicalmente. Em vários países da Europa, aprovam-se as chamadas Smart Specialization Strategies, Estratégias de Especialização Inteligentes, que identificam temas prioritários para uma agenda de investigação com o propósito de servir diretamente o crescimento das economias. De acordo com estas estratégias, os temas de projetos de investigação devem estar alinhados com os temas prioritários que forem definidos e que supostamente contribuírem para o desenvolvimento da economia dos países, como se não fosse verdade que grande parte dos contributos da ciência e tecnologia atuais existem porque surgiram e amadureceram sem impacto imediato durante anos.
Claro que Portugal não hesitou em definir a sua Estratégia de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente (ENEI), num extenso documento que, em linha com esta política europeia, submete a investigação científica a desígnios meramente economicistas e elimina a investigação fundamental do elenco prioritário.
Há um conjunto de falsos argumentos associados a estas estratégias, que vale a pena discutir e sobre os quais não me alongarei. O fundamental tem a ver com o alegado e estafado impacto do investimento em ciência no desenvolvimento da economia. Sabemos, no entanto, que alguns dos países em que esse impacto é maior até são os que continuam a ter maior financiamento em investigação fundamental (Estados Unidos e Alemanha) e programas de financiamento em que a demonstração de impacto não é necessária, nomeadamente na área das ciências sociais e das humanidades.
Também sabemos que Portugal prontamente elaborou a ENEI, como bom discípulo europeu, para poder aceder a fundos para a investigação (em vez de ter um papel ativo na discussão de alguma orientação desastrosa que tem sido dada à ciência na Europa). Mas ao fazê-lo, os autores da ENEI portuguesa simplesmente anularam as ciências sociais e as humanidades. Este domínio não tem qualquer expressão na estratégia definida. As ciências sociais e as humanidades não se enquadram nos temas prioritários e ocorrem, na melhor das hipóteses, como áreas subsidiárias para alguns dos temas propostos. O argumento de que são implícitas e transversais a tudo é a melhor forma de dizer que não estão em lugar nenhum.
É triste e tacanho que não se perceba que, numa democracia ainda recente, com níveis de qualificação baixíssimos, com literacias literária e científica reduzidas e em que a mobilidade social que a educação e a ciência deviam permitir ainda não são uma realidade, o contributo das ciências sociais e das humanidades ainda não seja percebido como absolutamente prioritário para o desenvolvimento da economia e para a qualificação e valorização da população.
Tal como nas candidaturas a projetos europeus, corremos o risco de ver os investigadores das ciências sociais e as humanidades em exercícios de criatividade para convencer avaliadores e financiadores de que os seus projetos têm alguma correspondência aos temas propostos. Mas isso é pouco sério e provará ser prejudicial. É redutor e uma estratégia pouco inteligente num país que ainda precisa de crescer e que o pode fazer apoiado por esta área científica. Esta estratégia tem, portanto, de ser revista urgentemente.
Professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e presidente do Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
JOÃO COSTA
29/05/2015 - 02:39
Público
Todos os indicadores de produtividade e desempenho científico mostram que, nas últimas décadas, a comunidade científica atingiu níveis notáveis de produção em publicações, qualificações e internacionalização. A corrida está longe de estar ganha e o investimento deve continuar, mas os números são impressionantes, sobretudo tendo em conta que, em alguns domínios científicos, a investigação em Portugal só se começou realmente a desenvolver nos últimos 40 anos. Em algumas das áreas das ciências sociais e das humanidades, simplesmente não havia qualquer instrumento de financiamento e, em muitas situações, o contexto político não admitia que houvesse investigação. Por este mesmo motivo, é impressionante como, em apenas 40 anos, houve grupos de investigadores que conseguiram atingir níveis de produção, impacto e reconhecimento entre pares que os colocaram entre os melhores a nível mundial.
Dois fatores foram cruciais para estes resultados: confiança no sistema e investimento. A questão do investimento e financiamento é óbvia. Nada cresce sem investimento.
A confiança traduz-se, desde logo, em depositar na comunidade científica a responsabilidade de identificar os temas que definem a agenda de investigação. É aos investigadores, porque são os especialistas nas áreas e porque é neles que a própria sociedade investe no cumprimento desta missão, que compete olhar para o mundo e perceber quais são as questões relevantes. Formular as perguntas é o ponto de partida crucial para que a ciência tenha sucesso. Se as perguntas forem impostas por outros, externos à própria comunidade científica, todo o trabalho científico pode estar a ser desvirtuado e corre o risco de ser pervertido. Durante anos, os cientistas sociais e os investigadores em humanidades tiveram a liberdade de colocar as questões relevantes e definir a agenda de investigação, sendo a relevância e pertinência dessas questões avaliada por pares. Por isso mesmo, essas áreas progrediram.
Este paradigma corre o risco de se alterar radicalmente. Em vários países da Europa, aprovam-se as chamadas Smart Specialization Strategies, Estratégias de Especialização Inteligentes, que identificam temas prioritários para uma agenda de investigação com o propósito de servir diretamente o crescimento das economias. De acordo com estas estratégias, os temas de projetos de investigação devem estar alinhados com os temas prioritários que forem definidos e que supostamente contribuírem para o desenvolvimento da economia dos países, como se não fosse verdade que grande parte dos contributos da ciência e tecnologia atuais existem porque surgiram e amadureceram sem impacto imediato durante anos.
Claro que Portugal não hesitou em definir a sua Estratégia de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente (ENEI), num extenso documento que, em linha com esta política europeia, submete a investigação científica a desígnios meramente economicistas e elimina a investigação fundamental do elenco prioritário.
Há um conjunto de falsos argumentos associados a estas estratégias, que vale a pena discutir e sobre os quais não me alongarei. O fundamental tem a ver com o alegado e estafado impacto do investimento em ciência no desenvolvimento da economia. Sabemos, no entanto, que alguns dos países em que esse impacto é maior até são os que continuam a ter maior financiamento em investigação fundamental (Estados Unidos e Alemanha) e programas de financiamento em que a demonstração de impacto não é necessária, nomeadamente na área das ciências sociais e das humanidades.
Também sabemos que Portugal prontamente elaborou a ENEI, como bom discípulo europeu, para poder aceder a fundos para a investigação (em vez de ter um papel ativo na discussão de alguma orientação desastrosa que tem sido dada à ciência na Europa). Mas ao fazê-lo, os autores da ENEI portuguesa simplesmente anularam as ciências sociais e as humanidades. Este domínio não tem qualquer expressão na estratégia definida. As ciências sociais e as humanidades não se enquadram nos temas prioritários e ocorrem, na melhor das hipóteses, como áreas subsidiárias para alguns dos temas propostos. O argumento de que são implícitas e transversais a tudo é a melhor forma de dizer que não estão em lugar nenhum.
É triste e tacanho que não se perceba que, numa democracia ainda recente, com níveis de qualificação baixíssimos, com literacias literária e científica reduzidas e em que a mobilidade social que a educação e a ciência deviam permitir ainda não são uma realidade, o contributo das ciências sociais e das humanidades ainda não seja percebido como absolutamente prioritário para o desenvolvimento da economia e para a qualificação e valorização da população.
Tal como nas candidaturas a projetos europeus, corremos o risco de ver os investigadores das ciências sociais e as humanidades em exercícios de criatividade para convencer avaliadores e financiadores de que os seus projetos têm alguma correspondência aos temas propostos. Mas isso é pouco sério e provará ser prejudicial. É redutor e uma estratégia pouco inteligente num país que ainda precisa de crescer e que o pode fazer apoiado por esta área científica. Esta estratégia tem, portanto, de ser revista urgentemente.
Professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e presidente do Conselho Científico das Ciências Sociais e Humanidades da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
JOÃO COSTA
29/05/2015 - 02:39
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