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A burocracia opaca
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A burocracia opaca
A obsessão pela modernização administrativa, que tem vindo a introduzir mecanismos de inovação significativos, ajuda a resolver muitos dos problemas relacionados com a transparência
Na década de 1980 existia, na Câmara Municipal de Santa Marta de Penaguião, um carimbo que dizia “Publique-se em Diário da República. Afixe-se, em Edital, nos locais de estilo”. Este carimbo era o ponto máximo das administrações públicas, uma espécie de funcionalização da transparência dos actos, um automatismo que resolvia os problemas de consciência da lei.
Já nesta década, passados 30 anos, encontrei num serviço relevante uma situação inusitada. O secretário das reuniões da administração saía quando os decisores entravam na parte que dizia respeito à gestão interna. As actas das reuniões não eram públicas e os dirigentes não conheciam as deliberações que, por mero acaso, até se chamavam despachos.
Está claro que não se tratava de uma opção pelo secretismo, antes uma rotina que ninguém questionara e com que todos os agentes do passado se haviam conformado.
A nossa burocracia pública vive na (quase) absoluta opacidade. Os portugueses, por si ou pelos agentes mediadores, observam uma dificuldade tremenda para conseguirem conhecer na íntegra os actos administrativos.
O enquadramento jurídico, designadamente o que se refere ao procedimento administrativo, tem vindo a determinar novas realidades. Acontece que a norma é para ser violada, princípio que existe em Portugal como regra de boa gestão.
A obsessão pela modernização administrativa, que tem vindo a introduzir mecanismos de inovação significativos, ajuda a resolver muitos dos problemas relacionados com a transparência. Mas não pretende a sua eliminação e, por vezes, até ajuda à criatividade para que outros advenham. Foi assim em 2009. As licenças de caça eram receita dos serviços regionais de florestas, negando o princípio da unidade de tesouraria e promovendo um “saco azul” ilegal. A decisão de virtualizar a sua emissão, através da emissão nas caixas multibanco, criou uma quase revolta.
Posteriormente voltaram a ser emitidas pelos serviços e hoje ninguém sabe muito bem em que ponto está o processo, como evoluiu. Serve este caso para demonstrar que não é o processo de simplificação que implica, por si só, a transparência, e que sem a vontade dos dirigentes e dos funcionários cada processo regressa à “casa de partida”.
A mania da transparência é, por vezes, um problema. Vejamos o que acontece com as listas de nomeados para as assessorias governamentais. Essas nomeações não deveriam sequer ser públicas. A dotação fixa dos lugares de gabinete, com vencimentos e condições tipificadas, deveria levar à livre escolha dos governantes, sem mais.
Já o mesmo não pode acontecer com as nomeações dos dirigentes, que não relevam da confiança pessoal e que observam regras específicas no exercício das funções.
Até agora, as nomeações são publicadas no Diário da República. Só que essa publicação, de tão anacrónica e massificada, deixa de ter qualquer utilidade. É por isso que o DR deve ser objecto de uma ampla reforma, só aceitando incorporar actos administrativos que vinculem ou se destinem ao universo dos cidadãos.
Em contrapartida, deveremos passar a assumir o princípio da transparência ao nível dos sites institucionais de cada departamento.
Desde logo, as ferramentas de gestão, plano de acção e orçamento, relatório de actividades e conta. Uma experiência que passe, neste tempo, pela procura dos documentos identificados é um suplício.
Mas deverá ser obrigatório publicar ainda a lista dos dirigentes, as suas biografias, os tempos de nomeação e as cartas de missão.
Cada serviço deve disponibilizar também o quadro de pessoal, as dotações e os salários e outros abonos. Só assim se consegue promover uma leitura transversal dos anacronismos que existem nos corpos administrativos.
As decisões dos órgãos de gestão, ou os despachos dos dirigentes que determinem obrigações externas, devem observar igualmente a publicação. O mesmo se refere à contratação pública, seja qual for o regime e processo utilizados.
Uma das acusações que são feitas a quem pede mais transparência é a implicação que as obrigações acima referidas podem ter no direito à privacidade. Importa desde logo garantir que em nenhum processo de divulgação de actos se põem em causa os dados pessoais.E mais: importa ter em conta que, em muitas circunstâncias, o dever de informar não deve sobrepor-se à obrigação de protecção.
Uma matéria que não tem sido tratada, no que se refere às administrações públicas, é a que responde aos impedimentos e incompatibilidades. O debate limita-se aos políticos. Acontece que é muito mais relevante, decisivo, que as regras aplicadas aos políticos o sejam a todos os decisores de primeira linha. E mais: se se afirma que é imprescindível a existência de um portal geral de registo, interessa que esse mesmo portal tenha reflexo nos sites de cada serviço.
Por último, a responsabilidade pessoal pela gestão. Em muitos serviços é verificada a posteriori a existência de despesa realizada sem cabimentação ou mesmo sem suporte legal. Trata-se de um hábito que continua em força no Estado. Só a responsabilização pessoal pela despesa não legalmente efectuada nem superiormente autorizada pode resolver este grave problema.
Promover a modernização das AP é relevante. Mas abrir as portas à sindicância é essencial.
Escreve à segunda-feira
Ascenso Simões
01/06/2015 08:00
Jornal i
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