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A persistência do homem soviético
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A persistência do homem soviético
Um excelente livro publicado recentemente - O Fim do Homem Soviético - é deveras inquietante. Fala das saudades que muitos russos têm dos tempos da URSS e do fascínio das novas gerações por Estaline.
Uma das vítimas do estalinismo, um soldado condenado pelo Estado soviético a trabalhos forçados durante seis anos na Sibéria, continuou a ser um ferveroso adepto de Estaline
É verdade que em Portugal, em algumas pessoas mais velhas, ainda existe alguma nostalgia pelos tempos do salazarismo; mas os jovens são democratas e nem lhes passa pela cabeça outra coisa. Os partidos neonazis nunca tiveram qualquer expressão em Portugal. Sempre foram grupúsculos de meia dúzia de lunáticos. O líder de um deles - Mário Machado - está preso, havendo quem diga ironicamente que é o único preso político em Portugal...
Mas atenção: não comparemos o salazarismo ao estalinismo. Nem de perto nem de longe. Durante o Estado Novo morreram nas prisões do Regime 50 militantes do PCP. Em média, um por ano. Ora na Rússia estalinista matar 50 pessoas era uma brincadeira. Morreram aos milhões.
O Fim do Homem Soviético é uma sucessão engenhosa de histórias pessoais: relatos de homens e mulheres que descrevem a sua vida, o que sentem, o que pensaram e o que pensam, como se falassem para um gravador. Umas são saudosas do comunismo, outras foram adeptas da perestroika mas desiludiram-se. Raras são aquelas que se dizem felizes neste novo tempo depois da queda da União Soviética.
Quase todas as histórias ali contadas são extraordinárias - e muitas são sinistras.
No conflito entre a URSS e a Finlândia, que precedeu a Segunda Guerra Mundial, houve uma batalha num lago gelado. Os finlandeses sabiam que, por baixo da camada de gelo, estava água, mas os russos não. Então, quando os russos começaram a avançar sobre a superfície gelada, os finlandeses puseram-se a disparar para o chão, rompendo a placa onde os soldados soviéticos se encontravam - e estes afundaram-se às centenas. Só alguns conseguiram chegar à margem, onde os finlandeses os esperavam. E estes ajudaram-nos a subir para terra firme, deram-lhes álcool para aquecerem e mantas para se agasalharem.
No fim do conflito, houve troca de prisioneiros. E enquanto os finlandeses eram recebidos na sua terra como heróis, os russos eram recebidos como traidores e enviados para campos de trabalho na Sibéria, condenados a penas de vários anos de prisão.
Ora bem, depois de iniciada a Segunda Guerra Mundial, aqueles condenados pediram para ir para a frente de batalha. Ao menos sempre seriam úteis ao seu país. Mas o pedido foi-lhes recusado. Eram uns párias, não serviam para nada, nem como carne para canhão.
Acontece que uma das vítimas desta atrocidade, que foi feito prisioneiro na Finlândia e depois condenado pelo Estado soviético a trabalhos forçados durante seis anos na Sibéria, com a proibição de contactar com a família, ao regressar a casa continuou a ser um fervoroso adepto de Estaline, cuja foto tinha pendurada na parede. E mais tarde condenou asperamente a perestroika!
Quanto mais me bates, mais gosto de ti - diz o povo e às vezes é verdade.
Muita gente faz a distinção entre Estaline e Hitler. Ninguém tem dúvidas de que o segundo era um facínora, um monstro, enquanto o outro era um líder bem-intencionado que matou em nome de uma causa nobre. Se uma pessoa disser hoje que é fascista, todos a olharão com espanto e reprovação; mas se disser que é comunista, será tolerada ou mesmo admirada.
Isto acontece porque a história é sempre escrita pelos vencedores. E enquanto a URSS saiu vencedora da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha e a Itália figuraram entre os derrotados. E isso fez toda a diferença.
Há uns meses, um canal de História transmitiu imagens pouco conhecidas da entrada em Berlim, em 1945, dos soldados soviéticos, que foram os primeiros a lá chegar. E comportaram-se como uns selvagens, cometendo todo o tipo de atrocidades contra os civis. Um paquete onde milhares de alemães fugiam para a América foi afundado, só se salvando menos de mil. Mas estes e outros episódios semelhantes são muito mal conhecidos. Os vencedores são sempre heróis e os vencidos sempre patifes. Os alemães 'ocuparam' Paris mas os russos 'libertaram' Berlim. O ponto de vista dos vencedores é o que invariavelmente prevalece.
Hoje, na Europa, muita gente diz-se desiludida com a democracia e adere a movimentos, partidos ou teorias que prometem o paraíso.
Cresce a ideia de que a Europa «tem de voltar à política» - como não se cansam de repetir alguns líderes de opinião. E muitos vão na conversa: querem movimento, agitação, sonhos, causas. Ora, esquecem-se que foram exactamente as ideologias que conduziram às maiores atrocidades da história da humanidade.
O comunismo, o fascismo, o nazismo, o maoismo, etc., tudo isso foram sonhos - que provocaram milhões de cadáveres.
Longe de ansiar pelo regresso das ideologias, eu desejo a morte definitiva das ideologias. A sociedade de mercado pode ser muito má, ter muitos defeitos, pode haver muitas trafulhices, corrupção, negócios escuros. É evidente que o capitalismo e o mundo dos negócios conduz facilmente a isso. Mas o que são esses problemas comparados com montanhas de cadáveres? Comparados com os campos de concentração, com as valas comuns, com as câmaras de gás, com os fuzilamentos em massa, com as carnificinas nocturnas, com os pogroms. E estas matanças, com diferenças apenas nos métodos, foram comuns ao comunismo e ao nazismo. A Estaline e a Hitler.
A Europa pode ter hoje pouco espaço para o sonho. Mas será bom sonhar com novas ideologias de salvação? Com novas ilusões? Com novos massacres?
O bicho homem parece precisar do conflito, de causas heróicas, de guerras. E em tempos de paz enerva-se, diz que lhe faltam as razões para lutar.
Até homens como Mário Soares, que defenderam a paz e combateram o comunismo, parecem desejar um regresso ao passado. Um regresso ao tempo em que comunistas, nazis e democratas se batiam ferozmente uns contra os outros. Felizmente ganharam as democracias. Mas passados 70 anos há muita gente descontente.
Pois eu digo: na Europa tem de haver espaço para o sonho. Mas os sonhos só são bons quando dizem respeito a um cidadão ou a uma família. Quando os sonhos se tornam colectivos, existe o enorme perigo de se transformarem em terríveis pesadelos.
jas@sol.pt
José António Saraiva | 02/07/2015 15:27
SOL
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