Bichos

Foi aquele animal que me permitiu aproximar-me da minha sobrinha. Eu ainda vivia em Lisboa e, estando cá de férias, nem sempre encontrava a linguagem certa para comunicar com ela. Até que, uma tarde, a vi esticando três rebentos de erva na direcção de uma cabra.

- É tua, a cabrinha? - arrisquei.

Foi o início de uma amizade. Apesar da distância, da adolescência e de tudo o que nos distanciou, aproximou e voltou a distanciar depois, havia sempre um momento em que não éramos apenas tio e sobrinha, um homem urbano e algo tenso e uma menina com dificuldades de sociabilização e um certo desejo de silêncio. Éramos amigos.
E tudo se passava a pretexto daquela cabra. Das suas idiossincrasias. Da sua evocação.

- Já lhe deste de comer hoje? - perguntava eu.

A garota voltava do seu mundo distante:

- Lógico, não é, tio?

Falava-me da cabrinha, de como tinha conseguido pô-la a fazer isto ou aquilo, do quão parecida era com a cabrinha da Heidi. Contava histórias em que, em defesa dela, o animal investira contra outras crianças, com os seus modestos chifres.

- Já a foste ver, tio? - perguntava--me, mal eu acabara de aterrar.

Então, ficávamos ali a conversar sobre o bicho, e depois sobre os amiguinhos da minha sobrinha, e depois sobre a escola. E, a certa altura - gosto de acreditar nisto -, a minha sobrinha já não era uma criança com dificuldades de sociabilização, mas uma menina como as outras, com melancolias e entusiasmos.

Até que, uma noite, visitei a minha irmã à hora de jantar. Sentada à mesa, a pequena ergueu um garfo com um pedaço de carne na ponta:

- Queres provar a minha cabrinha, tio?

Um dia destes lembrámo-nos dela. Rimo-nos. Aquela cabra continua uma boa memória. Ter acabado no tacho não lhe tirou imaginário: provavelmente reforçou-o.

por JOEL NETO
Diário de Notícias