Mars One

Às vezes ponho-me a imaginar a partida do navio que deixou os primeiros colonos nestas ilhas. Aquele instante em que o capitão manda largar: as velas perdendo-se na bruma, os animais rugindo ainda, na praia, exaustos e confusos - os pioneiros marchando já na direcção da montanha, em busca de abrigo.

E um deles permitindo-se olhar para trás, como a mulher de Ló. Só um olhar. Só uma hesitação. Nenhuma certeza sobre quando voltará o navio - se voltará sequer ou se, voltando, os encontrará vivos.

Na verdade, pouco mais do que isso distingue o povoamento destas paragens do da restante província portuguesa: haver um navio e esse instante ter ocorrido com proximidade histórica suficiente para que possamos imaginá-lo. Não terá sido assim tão diferente de cada vez que um lusitano acabava de percorrer um vale e, ao contornar o desfiladeiro, se apeava do burro a reclamar território.

O animal cansado da viagem. Um alforge vazio - de comida, de água, de alegria. Um olhar apenas, como o da mulher de Ló.

Leio agora sobre essa venturosa viagem a Marte que preparam os holandeses, sob a designação genérica Mars One, e julgo encontrar pontos de contacto com a demanda desses aventureiros. Mas, afinal, fico a saber que as quatro pessoas seleccionadas viverão os últimos dias das suas vidas dentro de uma caixa, sem direito a regresso - e que, ainda por cima, o seu esforço não passará de uma atracção televisiva, que os produtores hão-de tentar persuadir-nos a comparar aos Jogos Olímpicos, e não ao Big Brother.

A única semelhança entre os velhos e os novos pioneiros é que em ambos os casos a Terra se esgotou de um tipo de recurso em particular. Mas não do mesmo. Historicamente, esgotou-se de alimentos, de paz, de condições de vida. 

Hoje, esgotou-se sobretudo de esperança.

por JOEL NETO
Diário de Notícias