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Turistas na nossa própria cidade
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Turistas na nossa própria cidade
A Livraria Lello começou a cobrar entradas: três euros por pessoa. Presume-se que apenas para os turistas, não para os seus “naturais” frequentadores, ou seja, os apreciadores e compradores de livros. Entre o final da adolescência e dos meus 20 anos, contei-me entre estes últimos: era, não apenas um frequentador assíduo, mas também um leitor compulsivo. De tal modo que, confesso, não prestava grande atenção ao ambiente neogótico da arquitectura, que via como um invólucro razoavelmente atraente para aquilo que na verdade me interessava.
A cobrança de entradas veio, portanto, oficializar algo que corresponde a uma completa inversão da funcionalidade primeira da livraria: a arquitectura tornou-se o maior motivo de atracção, enquanto os livros sobram como um simples adereço que, arrisco-me a dizer, bem poderiam ser substituídos por souvenirs da torre dos Clérigos ou camisolas do Ronaldo.
O microcosmos da Lello não é muito diverso do macrocosmos da cidade actual, sobretudo do seu centro histórico. A enorme afluência do turismo introduziu profundas cisões numa paisagem antiga, cujos problemas já se faziam sentir há décadas. Composta, não apenas pela sucessão das gerações que aí viveram, trabalharam, descansaram ou brincaram, e pelo cenário material que criaram enquanto o faziam, essas debilidades antigas tornaram-na particularmente exposta à “Barcelonização” em curso.
O afluxo crescente do turismo impôs uma nova economia, novas formas de sociabilização e novos modelos culturais transportados pelos recém-chegados. A consequência para os residentes é, a longo prazo, a expulsão ou uma difícil reconversão.
Restará, portanto, o cenário: as tascas e casas de pasto transformadas em retiros de francesinhas especiais, lojas de produtos gourmet ou cafés new age, as pensões mais ou menos manhosas em hostels, o comércio a retalho na invariável loja de recordações. Em alternativa, os moradores que pretenderem ficar poderão sempre aprender a cuspir labaredas de fogo, fazer bolas de sabão gigantes ou girar, barulhentos como DJ’s, mostrando a sua animação.
Tudo isso se reflecte no aumento generalizado dos preços, das rendas e, de uma maneira geral, do custo de vida. Os poucos que por enquanto não foram atingidos pela febre inflacionista e mantêm a qualidade da sua produção — engraxadores, barbeiros e afins — fazem-no porque o turismo os olha, até ver, com um receio que a curiosidade ainda não venceu e, portanto, não recorre aos seus serviços. Desconheço se, com os vendedores de substâncias proibidas, ou as conservadoras de S. Lázaro, ocorre o mesmo…
Fica, portanto, o gótico (neo) e desaparecem os livros. Ou antes, eles estão lá, mas reduzidos a encadernações. No fundo, não faltará muito para que sejamos turistas na nossa própria cidade.
Docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto
JOSÉ FERRÃO AFONSO
04/08/2015 - 11:06
Público
A cobrança de entradas veio, portanto, oficializar algo que corresponde a uma completa inversão da funcionalidade primeira da livraria: a arquitectura tornou-se o maior motivo de atracção, enquanto os livros sobram como um simples adereço que, arrisco-me a dizer, bem poderiam ser substituídos por souvenirs da torre dos Clérigos ou camisolas do Ronaldo.
O microcosmos da Lello não é muito diverso do macrocosmos da cidade actual, sobretudo do seu centro histórico. A enorme afluência do turismo introduziu profundas cisões numa paisagem antiga, cujos problemas já se faziam sentir há décadas. Composta, não apenas pela sucessão das gerações que aí viveram, trabalharam, descansaram ou brincaram, e pelo cenário material que criaram enquanto o faziam, essas debilidades antigas tornaram-na particularmente exposta à “Barcelonização” em curso.
O afluxo crescente do turismo impôs uma nova economia, novas formas de sociabilização e novos modelos culturais transportados pelos recém-chegados. A consequência para os residentes é, a longo prazo, a expulsão ou uma difícil reconversão.
Restará, portanto, o cenário: as tascas e casas de pasto transformadas em retiros de francesinhas especiais, lojas de produtos gourmet ou cafés new age, as pensões mais ou menos manhosas em hostels, o comércio a retalho na invariável loja de recordações. Em alternativa, os moradores que pretenderem ficar poderão sempre aprender a cuspir labaredas de fogo, fazer bolas de sabão gigantes ou girar, barulhentos como DJ’s, mostrando a sua animação.
Tudo isso se reflecte no aumento generalizado dos preços, das rendas e, de uma maneira geral, do custo de vida. Os poucos que por enquanto não foram atingidos pela febre inflacionista e mantêm a qualidade da sua produção — engraxadores, barbeiros e afins — fazem-no porque o turismo os olha, até ver, com um receio que a curiosidade ainda não venceu e, portanto, não recorre aos seus serviços. Desconheço se, com os vendedores de substâncias proibidas, ou as conservadoras de S. Lázaro, ocorre o mesmo…
Fica, portanto, o gótico (neo) e desaparecem os livros. Ou antes, eles estão lá, mas reduzidos a encadernações. No fundo, não faltará muito para que sejamos turistas na nossa própria cidade.
Docente da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto
JOSÉ FERRÃO AFONSO
04/08/2015 - 11:06
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