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Lisboa em Agosto
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Lisboa em Agosto
A Lisboa dos Agostos mansos e tranquilos já só existe na memória de alguns
Agosto em Lisboa já foi sinónimo de tranquilos passeios a pé pela sombra das avenidas, de ausência de trânsito, de abundância de lugares de estacionamento em frente aos poucos restaurantes que abriam portas neste mês. Se quisermos prolongar o esforço da memória até ao milénio precedente, Agosto em Lisboa também já quis dizer idas ao cinema com possibilidade de ver ou rever os melhores filmes do ano, aquilo que se chamou então cinema de “reprise”. Em tempos de maior fortuna houve sessões de cinema ao ar livre, a melhor das formas de ver cinema.
Os tempos mudaram. Lisboa em Agosto de 2015 permite encontrar quase todos os restaurantes de porta aberta mas, hélas!, cheios. Os parques de estacionamento da Baixa decidiram prolongar os festejos benfiquistas pela conquista do bicampeonato e afixam em permanência em letras vermelhas a palavra “completo”. Do Marquês de Pombal para baixo a cidade foi tomada por uma turba-multa que em tropel compacto ignora passeios, semáforos e passadeiras e com a graça e a fome dos rebanhos de cabras atravessa os bairros históricos.
Pelas esplanadas que brotaram como cogumelos amontoa-se uma sessão plenária de uma qualquer Assembleia Geral das Nações Unidas pós-nuclear fruindo os esplendores da gastronomia lusitana tais como são apresentados: cerveja morta de barril e batata frita congelada. Roncando surge um quinto cavaleiro do apocalipse, o Tuk-Tuk, criação de um qualquer Frankenstein da mecânica a partir do pior de vários mundos: o trânsito de Banguecoque, a tentativa de poliglotismo de Karachi, a esmerada cortesia estradal dos portugueses e o uso de gases asfixiantes durante a Grande Guerra. O peão incauto fica à mercê do Tuk Tuk, com menos possibilidades de sobrevivência do que uma ovelha amarrada na presença de uma matilha de lobos.
A baixa pombalina viu florescer o comércio de louro prensado ao ponto de ameaçar a sobrevivência dos artesãos da Cova da Moura e da Curraleira.
A pujante venda do azulejo “made in China”, em plástico, que como já explicou o O’Neil, é mais barato, está ameaçada pelo desastre de Tianjing que destruiu os stocks para os próximos meses.
Os despovoados quarteirões ortogonais mandados construir por Pombal estão agora consagrados à monocultura dos hotéis e dos “hostels”. Pelas colinas acumulam-se alojamentos “very typical”, populares e baratos em revivescências da pensão Estrelinha, águas quentes e frias.
Passa por mim o enésimo autocarro “double-decker” e vermelho com uma gravação gritando as glórias do “Marques do Pombal”. Quis atirar-lhe milho. Foi mais fácil pontapear na sua direcção um pombo morto e liofilizado pelo calor e pela falta de limpeza. Falhei miseravelmente. O pombo morto não levantou voo e o autocarro mimetizou-se em polvo e cuspiu uma nuvem tinta de fumo negro.
O autóctone aprende a viver sob ocupação. Os mais hábeis tentam disfarçar-se de turistas, vão para dentro cá fora: rasgam e sujam t-shirts, aplicam tatuagens provisórias em mais de 99% do corpo, evitam o contacto com água (exterior ou interior) durante pelo menos uma semana, deixam crescer uma barba façanhuda e esperam assim poder chegar incólumes ao final do Verão.
A Lisboa dos Agostos mansos e tranquilos já só existe na memória de alguns. Face ao pesadelo actual, seria pedir muito que se fizesse um esforço para sonhar Lisboa?
Escreve à sexta-feira
Mário João Fernandes
21/08/2015 08:00
Jornal i
Agosto em Lisboa já foi sinónimo de tranquilos passeios a pé pela sombra das avenidas, de ausência de trânsito, de abundância de lugares de estacionamento em frente aos poucos restaurantes que abriam portas neste mês. Se quisermos prolongar o esforço da memória até ao milénio precedente, Agosto em Lisboa também já quis dizer idas ao cinema com possibilidade de ver ou rever os melhores filmes do ano, aquilo que se chamou então cinema de “reprise”. Em tempos de maior fortuna houve sessões de cinema ao ar livre, a melhor das formas de ver cinema.
Os tempos mudaram. Lisboa em Agosto de 2015 permite encontrar quase todos os restaurantes de porta aberta mas, hélas!, cheios. Os parques de estacionamento da Baixa decidiram prolongar os festejos benfiquistas pela conquista do bicampeonato e afixam em permanência em letras vermelhas a palavra “completo”. Do Marquês de Pombal para baixo a cidade foi tomada por uma turba-multa que em tropel compacto ignora passeios, semáforos e passadeiras e com a graça e a fome dos rebanhos de cabras atravessa os bairros históricos.
Pelas esplanadas que brotaram como cogumelos amontoa-se uma sessão plenária de uma qualquer Assembleia Geral das Nações Unidas pós-nuclear fruindo os esplendores da gastronomia lusitana tais como são apresentados: cerveja morta de barril e batata frita congelada. Roncando surge um quinto cavaleiro do apocalipse, o Tuk-Tuk, criação de um qualquer Frankenstein da mecânica a partir do pior de vários mundos: o trânsito de Banguecoque, a tentativa de poliglotismo de Karachi, a esmerada cortesia estradal dos portugueses e o uso de gases asfixiantes durante a Grande Guerra. O peão incauto fica à mercê do Tuk Tuk, com menos possibilidades de sobrevivência do que uma ovelha amarrada na presença de uma matilha de lobos.
A baixa pombalina viu florescer o comércio de louro prensado ao ponto de ameaçar a sobrevivência dos artesãos da Cova da Moura e da Curraleira.
A pujante venda do azulejo “made in China”, em plástico, que como já explicou o O’Neil, é mais barato, está ameaçada pelo desastre de Tianjing que destruiu os stocks para os próximos meses.
Os despovoados quarteirões ortogonais mandados construir por Pombal estão agora consagrados à monocultura dos hotéis e dos “hostels”. Pelas colinas acumulam-se alojamentos “very typical”, populares e baratos em revivescências da pensão Estrelinha, águas quentes e frias.
Passa por mim o enésimo autocarro “double-decker” e vermelho com uma gravação gritando as glórias do “Marques do Pombal”. Quis atirar-lhe milho. Foi mais fácil pontapear na sua direcção um pombo morto e liofilizado pelo calor e pela falta de limpeza. Falhei miseravelmente. O pombo morto não levantou voo e o autocarro mimetizou-se em polvo e cuspiu uma nuvem tinta de fumo negro.
O autóctone aprende a viver sob ocupação. Os mais hábeis tentam disfarçar-se de turistas, vão para dentro cá fora: rasgam e sujam t-shirts, aplicam tatuagens provisórias em mais de 99% do corpo, evitam o contacto com água (exterior ou interior) durante pelo menos uma semana, deixam crescer uma barba façanhuda e esperam assim poder chegar incólumes ao final do Verão.
A Lisboa dos Agostos mansos e tranquilos já só existe na memória de alguns. Face ao pesadelo actual, seria pedir muito que se fizesse um esforço para sonhar Lisboa?
Escreve à sexta-feira
Mário João Fernandes
21/08/2015 08:00
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