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O meu Algarve
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O meu Algarve
O meu Algarve não tem mar, nem areia, nem raquetes, nem rochas. O meu Algarve não tem sal nem Sul, é no meio de Portugal. Não tem mar nem rio, mas tem água e é até por causa da água que ela existe. Água de beber, que vem do centro da terra. Na Curia curam-se tiroides baralhadas, reumáticos joelhos, rins ruins. Tudo por causa do quimismo da água que, no que toca à mineralização total, é hipersalina e apresenta uma composição iónica sulfatada e cálcica, como de resto se pode ler no site. A água da Curia dá a vida eterna, ou pelo menos parece que dá, o que dá no mesmo, lá as velhices parecem mais lentas.
Passo sempre férias no Palace Hotel da Curia, hoje menos, antes quinze religiosos dias, de um a quinze, de agosto claro está, porque de um a quinze é coisa que só acontece em agosto. O quarto era sempre o mesmo, o cento e vinte sete, agora mudaram a numeração, e o quarto também não pode ser o mesmo com o número novo, porque antes era só eu e o meu avô, e agora sou eu mai-los bisnetos dele, que não se conheceram, ou melhor que se vão conhecendo também por passarem férias no mesmo sítio, mas que não cabem todos no mesmo quarto e por isso tem de ser outro quarto, ou outros. A palavra mai-los não deve estar correta, e pouco ou nada se usa, mas lia--a ontem à noite e gostei muito, num livro impressionante, Padre Américo - Páginas Escolhidas (Modo de Ler, 2008), hei de falar disto.
O Palace Hotel da Curia é o melhor hotel do mundo, uma opinião pessoal que é verdade, porque a verdade só existe no que achamos. Tem cheiro de hotel, corredores de hotel, portas de hotel, histórias de hotel. Não foi, mas podia ter sido lá, naqueles corredores e naquelas histórias cruzadas repetidas ano a ano, que Resnais se inspirou para o O Ano Passado em Marienbad; não foi, mas podia ter sido lá, e naqueles velhotes eternos, que Ron Howard se inspirou para o Cocoon; ou Thomas Mann para A Montanha Mágica; ou Wes Anderson para o Grande Hotel Budapeste. Foi lá filmada, no elevador antigo, hoje desativado, por alguma regra de segurança, contida numa diretiva qualquer muito feita a con- tento do Big Lift (o setor das maiores empresas mundiais de ascensores), a famosa cena da Balada da Praia dos Cães.
O Palace hoje tem famílias sobretudo no primeiro grau de parentesco e alguns, cada vez mais, turistas. Mas o Palace do meu tempo era povoado sobretudo por gente do Norte, na maioria avós com netos, ali deixados num regime de liberdade incondicional, ambos avós e netos, sem pais à mistura a olhar, num regime de amor livre. Vários netos num hotel de velhotes, é como se aquelas excursões de nove euros Fátima-Batalha-Óbidos-Nazaré-Mafra, para vender tupperwares e aparelhos auditivos por engano acabasse na Idanha durante o Boom Festival. Na sala de refeições, filetes de pescada com maionese, leitão, consomé, sopa juliana, paillards ao momento, uma dança de empregados, clientes, olhares, sinais de uma mesa para as outras, tudo antes dos sms (The Presentation of Self in Everyday Life, diria o senhor Goffman). O grupo repetia-se, amigos que guardo sem os ver, para sempre. Os dias na piscina, grande, de proporções olímpicas, que curiosamente não têm encolhido com o passar do tempo, pranchas, gelados, saltos. O hotel é de 1926 (projeto de Norte Júnior), mas a piscina inspirada num paquete é de 1934. Hoje as pranchas estão desativadas, por razões de segurança, e os baloiços e carrosséis foram desmontados, por razões de segurança, que hoje aquilo são mais mães com filho, e as mães, já se sabe, preocupam-se mais com a mortalidade infantil, sobretudo a dos próprios infantes.
Mas havia ali qualquer coisa que salvava, ainda há, uma mão por baixo, que guardava do disparate maior, quando tudo tendia mais para a ilha do Senhor das Moscas de Golding, ou para A Praia de Garland. De onde vinha isto? Em quarenta anos não me lembro de ter bebido daquela água. Mesmo os mais velhos tão-pouco a bebiam. Mas diziam que o efeito era o mesmo, que eram os ares, ou que era a água da torneira, ou a da piscina, onde não se metiam, mas para onde olhavam. São curiosas as curas da Curia.
Volto sempre ao meu Algarve, na Mealhada, sem medo de voltar aonde fui feliz. Porque só tem medo de voltar aonde foi feliz quem nunca foi verdadeiramente feliz. Ou verdadeiramente infeliz.
por JOÃO TABORDA DA GAMA - Familiar do Vasco da Gama
Diário de Notícias
Passo sempre férias no Palace Hotel da Curia, hoje menos, antes quinze religiosos dias, de um a quinze, de agosto claro está, porque de um a quinze é coisa que só acontece em agosto. O quarto era sempre o mesmo, o cento e vinte sete, agora mudaram a numeração, e o quarto também não pode ser o mesmo com o número novo, porque antes era só eu e o meu avô, e agora sou eu mai-los bisnetos dele, que não se conheceram, ou melhor que se vão conhecendo também por passarem férias no mesmo sítio, mas que não cabem todos no mesmo quarto e por isso tem de ser outro quarto, ou outros. A palavra mai-los não deve estar correta, e pouco ou nada se usa, mas lia--a ontem à noite e gostei muito, num livro impressionante, Padre Américo - Páginas Escolhidas (Modo de Ler, 2008), hei de falar disto.
O Palace Hotel da Curia é o melhor hotel do mundo, uma opinião pessoal que é verdade, porque a verdade só existe no que achamos. Tem cheiro de hotel, corredores de hotel, portas de hotel, histórias de hotel. Não foi, mas podia ter sido lá, naqueles corredores e naquelas histórias cruzadas repetidas ano a ano, que Resnais se inspirou para o O Ano Passado em Marienbad; não foi, mas podia ter sido lá, e naqueles velhotes eternos, que Ron Howard se inspirou para o Cocoon; ou Thomas Mann para A Montanha Mágica; ou Wes Anderson para o Grande Hotel Budapeste. Foi lá filmada, no elevador antigo, hoje desativado, por alguma regra de segurança, contida numa diretiva qualquer muito feita a con- tento do Big Lift (o setor das maiores empresas mundiais de ascensores), a famosa cena da Balada da Praia dos Cães.
O Palace hoje tem famílias sobretudo no primeiro grau de parentesco e alguns, cada vez mais, turistas. Mas o Palace do meu tempo era povoado sobretudo por gente do Norte, na maioria avós com netos, ali deixados num regime de liberdade incondicional, ambos avós e netos, sem pais à mistura a olhar, num regime de amor livre. Vários netos num hotel de velhotes, é como se aquelas excursões de nove euros Fátima-Batalha-Óbidos-Nazaré-Mafra, para vender tupperwares e aparelhos auditivos por engano acabasse na Idanha durante o Boom Festival. Na sala de refeições, filetes de pescada com maionese, leitão, consomé, sopa juliana, paillards ao momento, uma dança de empregados, clientes, olhares, sinais de uma mesa para as outras, tudo antes dos sms (The Presentation of Self in Everyday Life, diria o senhor Goffman). O grupo repetia-se, amigos que guardo sem os ver, para sempre. Os dias na piscina, grande, de proporções olímpicas, que curiosamente não têm encolhido com o passar do tempo, pranchas, gelados, saltos. O hotel é de 1926 (projeto de Norte Júnior), mas a piscina inspirada num paquete é de 1934. Hoje as pranchas estão desativadas, por razões de segurança, e os baloiços e carrosséis foram desmontados, por razões de segurança, que hoje aquilo são mais mães com filho, e as mães, já se sabe, preocupam-se mais com a mortalidade infantil, sobretudo a dos próprios infantes.
Mas havia ali qualquer coisa que salvava, ainda há, uma mão por baixo, que guardava do disparate maior, quando tudo tendia mais para a ilha do Senhor das Moscas de Golding, ou para A Praia de Garland. De onde vinha isto? Em quarenta anos não me lembro de ter bebido daquela água. Mesmo os mais velhos tão-pouco a bebiam. Mas diziam que o efeito era o mesmo, que eram os ares, ou que era a água da torneira, ou a da piscina, onde não se metiam, mas para onde olhavam. São curiosas as curas da Curia.
Volto sempre ao meu Algarve, na Mealhada, sem medo de voltar aonde fui feliz. Porque só tem medo de voltar aonde foi feliz quem nunca foi verdadeiramente feliz. Ou verdadeiramente infeliz.
por JOÃO TABORDA DA GAMA - Familiar do Vasco da Gama
Diário de Notícias
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