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O passador
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O passador
Poucos sabem que bem se conheceram nos anos 60.
Tomam todos os dias a "bica" no café da esquina, mas nunca ninguém os viu trocar um simples cumprimento. Fitam-se, baixam os olhos e, sem uma palavra, sentam-se em mesas separadas. É assim desde há 20 anos. Viúvos, reformados de França, moram em casa de filhos bem na vida, numa urbanização dos arredores de Lisboa. José e Carlos são homens na casa dos 70 e muitos. Carlos ostenta bigodinho à D. Juan e sotaque afrancesado com sonoridades transmontanas. José, ressonâncias beirãs, é homem de poucas falas. Carlos, pelo contrário, manda piropos às empregadas e tem opinião definitiva sobre tudo e todos.
Poucos sabem que bem se conheceram os dois nos idos de 60 e que, por desvairado acaso, voltaram a encontrar-se na velhice. Na juventude, José pediu emprestado para pagar o salto até à França. 3ª classe mal tirada, que o pai lavrador precisava de braços, chega à fala com contrabandista que conhece o esquema. Carlos, transmontano com infância passada em Paris, era então Charles. Faz bom dinheiro como membro de uma rede de "passadores", que leva até França muitos compatriotas. Ganha-se bem a levar os clandestinos, por montes e vales, depois de carro ou comboio, até à França das notas de franco.
Charles sobe rápido na hierarquia. Faz para si e dá a ganhar aos chefes de Paris. Certa madrugada, José beija a mãe, abraça o pai e arranca até à raia. Atravessadas penhas e brumas, fintados guardas fiscais, chega à aldeia espanhola. Charles espera-o, com a carrinha à cunha de compatriotas de cenho cerrado. Portas fechadas, José e o grupo passam dia e noite aos solavancos, na escuridão, conduzidos por um motorista espanhol. José só pensa na França. Sol a despontar, o hermano abre as portas e sussurra-lhes. "Vamos! Corram! França é já ali! Alguém vos apanha do outro lado!" José corre, esbaforido. Ignorante de geografias e ortografias, vê a placa de sonho: "França." Pouco depois, o desespero e a raiva. Acaba de chegar à portuguesíssima aldeia de França, concelho de Bragança.
José volta à sua aldeia lavado em lágrimas. Mais tarde, acaba mesmo por chegar a Paris, para fazer de pedreiro. Muito mais tarde reencontra Charles, que inventa mil desculpas para o que "o filho da puta do espanhol" lhe havia feito. Charles, despachado, concede até em arranjar trabalho como porteira à mulher de José. O beirão rende-se à evidência: quem sabe sabe, quem pode pode. Mas jura nunca mais trocar uma palavra com Charles. Esta semana, no café do costume, Carlos comenta o caso dos refugiados migrantes encontrados mortos dentro de um camião, na Áustria. "Tiveram um azar do caraças!" Pela primeira vez em 20 anos, José não resiste: "Ah Charles! Grande filho da puta me saíste tu!"
VICTOR BANDARRA
Jornalista
06.09.2015 00:30
Correio da Manhã
Tomam todos os dias a "bica" no café da esquina, mas nunca ninguém os viu trocar um simples cumprimento. Fitam-se, baixam os olhos e, sem uma palavra, sentam-se em mesas separadas. É assim desde há 20 anos. Viúvos, reformados de França, moram em casa de filhos bem na vida, numa urbanização dos arredores de Lisboa. José e Carlos são homens na casa dos 70 e muitos. Carlos ostenta bigodinho à D. Juan e sotaque afrancesado com sonoridades transmontanas. José, ressonâncias beirãs, é homem de poucas falas. Carlos, pelo contrário, manda piropos às empregadas e tem opinião definitiva sobre tudo e todos.
Poucos sabem que bem se conheceram os dois nos idos de 60 e que, por desvairado acaso, voltaram a encontrar-se na velhice. Na juventude, José pediu emprestado para pagar o salto até à França. 3ª classe mal tirada, que o pai lavrador precisava de braços, chega à fala com contrabandista que conhece o esquema. Carlos, transmontano com infância passada em Paris, era então Charles. Faz bom dinheiro como membro de uma rede de "passadores", que leva até França muitos compatriotas. Ganha-se bem a levar os clandestinos, por montes e vales, depois de carro ou comboio, até à França das notas de franco.
Charles sobe rápido na hierarquia. Faz para si e dá a ganhar aos chefes de Paris. Certa madrugada, José beija a mãe, abraça o pai e arranca até à raia. Atravessadas penhas e brumas, fintados guardas fiscais, chega à aldeia espanhola. Charles espera-o, com a carrinha à cunha de compatriotas de cenho cerrado. Portas fechadas, José e o grupo passam dia e noite aos solavancos, na escuridão, conduzidos por um motorista espanhol. José só pensa na França. Sol a despontar, o hermano abre as portas e sussurra-lhes. "Vamos! Corram! França é já ali! Alguém vos apanha do outro lado!" José corre, esbaforido. Ignorante de geografias e ortografias, vê a placa de sonho: "França." Pouco depois, o desespero e a raiva. Acaba de chegar à portuguesíssima aldeia de França, concelho de Bragança.
José volta à sua aldeia lavado em lágrimas. Mais tarde, acaba mesmo por chegar a Paris, para fazer de pedreiro. Muito mais tarde reencontra Charles, que inventa mil desculpas para o que "o filho da puta do espanhol" lhe havia feito. Charles, despachado, concede até em arranjar trabalho como porteira à mulher de José. O beirão rende-se à evidência: quem sabe sabe, quem pode pode. Mas jura nunca mais trocar uma palavra com Charles. Esta semana, no café do costume, Carlos comenta o caso dos refugiados migrantes encontrados mortos dentro de um camião, na Áustria. "Tiveram um azar do caraças!" Pela primeira vez em 20 anos, José não resiste: "Ah Charles! Grande filho da puta me saíste tu!"
VICTOR BANDARRA
Jornalista
06.09.2015 00:30
Correio da Manhã
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