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O Gigante Enterrado
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O Gigante Enterrado
No seu romance mais recente, "O Gigante Enterrado", o escritor Kazuo Ishiguro reflecte sobre a memória colectiva e sobre como as sociedades parecem, por vezes, suprimir memórias incómodas.
Quando se "enterram" factos passados, a reflexão e o debate sobre as suas causas e consequências desaparecem e as consciências são aliviadas. Mas corre-se o risco de ignorar lições importantes e de repetir erros. Podemos pensar em guerras ou em períodos de opressão. Mas, em circunstâncias menos extremas, por vezes podemos também ver esta amnésia colectiva nas opções políticas e económicas de uma sociedade.
Ao longo dos meus artigos neste espaço, tenho insistido numa ideia: aquilo que a economia portuguesa sofreu, nos últimos anos, é muito mais o resultado de uma resposta inadequada às mudanças de fundo na economia global do que a três ou quatro anos de troika e de políticas de "austeridade". Se não entendermos isto, ou se fingirmos não o entender, corremos o sério risco de acentuar e de prolongar no tempo as dificuldades dos últimos anos. A economia portuguesa começou por não se preparar devidamente para a integração na união económica e monetária. Sofreu, depois, o choque da entrada de diversas economias emergentes nos principais fluxos do comércio internacional (economias com um padrão de produção e exportação muito correlacionado com o nosso, mas trabalhando com custos muito inferiores, e que se tornaram também mais atractivas para o investimento). E enfrenta, desde há algum tempo, uma evolução demográfica adversa (com impactos potenciais significativos no mercado de trabalho, nas pensões e nas contas públicas), bem como uma contínua revolução tecnológica (que torna os processos produtivos mais fluidos, fragmentados e automatizados - e, logo, mais sujeitos a deslocalizações).
Até certo ponto, a melhoria das infra-estruturas em que Portugal investiu era necessária e foi útil. Mas, em geral, a economia portuguesa esteve longe de fazer o melhor aproveitamento dos fundos comunitários e, sobretudo, da conjuntura de ampla liquidez e de financiamento fácil que se viveu até à crise iniciada em 2007-2008. Nos 15-20 anos anteriores à crise, a política económica em Portugal foi muito marcada por objectivos de curto prazo e ignorou as alterações globais atrás referidas. Seguindo os incentivos que recebia dessa política, a actividade das empresas e das famílias privilegiou o endividamento, o consumo e a produção em sectores mais fechados e protegidos (logo, pouco produtivos).
O investimento foi abundante mas, a partir de certo ponto, inadequado e ineficaz. A vinda da troika foi, sobretudo, uma consequência destes erros. As discussões recentes em torno dessa vinda da troika parecem comprovar que a memória das sociedades é mesmo curta e selectiva. Discute-se como se, na altura, estivessem disponíveis várias opções, que poderiam ser escolhidas confortavelmente, apenas em função da vontade. As metas iniciais do programa eram demasiado ambiciosas e tiveram de ser corrigidas? É verdade. Houve impactos muito difíceis na economia? Certo. Mas seguramente evitaram-se consequências muito mais graves. O que a tão criticada execução do "programa de ajustamento" fez foi, simplesmente, estancar a hemorragia em que a economia portuguesa seguia, permitindo, pelo caminho, que se continuasse a pagar salários e pensões; e, provavelmente, que se evitasse, em Portugal, o congelamento das contas bancárias, como aconteceu na Grécia. E nunca é demais repetir - porque a memória é curta e selectiva - que muitos dos factos hoje atribuídos ao "programa da troika" se observavam já muitos anos antes de a troika chegar, por outras razões, de natureza mais estrutural. Um exemplo apenas, mas talvez o mais importante: entre 2000 e 2011, a taxa de desemprego subiu de 3,9% para 12,7% da população activa. Perto de meio milhão de desempregados a mais, e nada a ver com o "programa de ajustamento".
As restrições estruturais atrás referidas condicionarão a política económica no futuro próximo e estão mais activas agora do que há 5-10 anos. Qualquer opção de política económica que ignore esta realidade, e que se foque em estímulos de curto prazo, está condenada ao fracasso, por muito bem intencionada que seja. Para que a economia portuguesa não volte à situação de emergência dos últimos anos, é fundamental não enterrar a memória dos erros, nem o correcto entendimento dos factos.
Economista
24 Setembro 2015, 19:49 por Carlos Almeida Andrade
Negócios
Quando se "enterram" factos passados, a reflexão e o debate sobre as suas causas e consequências desaparecem e as consciências são aliviadas. Mas corre-se o risco de ignorar lições importantes e de repetir erros. Podemos pensar em guerras ou em períodos de opressão. Mas, em circunstâncias menos extremas, por vezes podemos também ver esta amnésia colectiva nas opções políticas e económicas de uma sociedade.
Ao longo dos meus artigos neste espaço, tenho insistido numa ideia: aquilo que a economia portuguesa sofreu, nos últimos anos, é muito mais o resultado de uma resposta inadequada às mudanças de fundo na economia global do que a três ou quatro anos de troika e de políticas de "austeridade". Se não entendermos isto, ou se fingirmos não o entender, corremos o sério risco de acentuar e de prolongar no tempo as dificuldades dos últimos anos. A economia portuguesa começou por não se preparar devidamente para a integração na união económica e monetária. Sofreu, depois, o choque da entrada de diversas economias emergentes nos principais fluxos do comércio internacional (economias com um padrão de produção e exportação muito correlacionado com o nosso, mas trabalhando com custos muito inferiores, e que se tornaram também mais atractivas para o investimento). E enfrenta, desde há algum tempo, uma evolução demográfica adversa (com impactos potenciais significativos no mercado de trabalho, nas pensões e nas contas públicas), bem como uma contínua revolução tecnológica (que torna os processos produtivos mais fluidos, fragmentados e automatizados - e, logo, mais sujeitos a deslocalizações).
Até certo ponto, a melhoria das infra-estruturas em que Portugal investiu era necessária e foi útil. Mas, em geral, a economia portuguesa esteve longe de fazer o melhor aproveitamento dos fundos comunitários e, sobretudo, da conjuntura de ampla liquidez e de financiamento fácil que se viveu até à crise iniciada em 2007-2008. Nos 15-20 anos anteriores à crise, a política económica em Portugal foi muito marcada por objectivos de curto prazo e ignorou as alterações globais atrás referidas. Seguindo os incentivos que recebia dessa política, a actividade das empresas e das famílias privilegiou o endividamento, o consumo e a produção em sectores mais fechados e protegidos (logo, pouco produtivos).
O investimento foi abundante mas, a partir de certo ponto, inadequado e ineficaz. A vinda da troika foi, sobretudo, uma consequência destes erros. As discussões recentes em torno dessa vinda da troika parecem comprovar que a memória das sociedades é mesmo curta e selectiva. Discute-se como se, na altura, estivessem disponíveis várias opções, que poderiam ser escolhidas confortavelmente, apenas em função da vontade. As metas iniciais do programa eram demasiado ambiciosas e tiveram de ser corrigidas? É verdade. Houve impactos muito difíceis na economia? Certo. Mas seguramente evitaram-se consequências muito mais graves. O que a tão criticada execução do "programa de ajustamento" fez foi, simplesmente, estancar a hemorragia em que a economia portuguesa seguia, permitindo, pelo caminho, que se continuasse a pagar salários e pensões; e, provavelmente, que se evitasse, em Portugal, o congelamento das contas bancárias, como aconteceu na Grécia. E nunca é demais repetir - porque a memória é curta e selectiva - que muitos dos factos hoje atribuídos ao "programa da troika" se observavam já muitos anos antes de a troika chegar, por outras razões, de natureza mais estrutural. Um exemplo apenas, mas talvez o mais importante: entre 2000 e 2011, a taxa de desemprego subiu de 3,9% para 12,7% da população activa. Perto de meio milhão de desempregados a mais, e nada a ver com o "programa de ajustamento".
As restrições estruturais atrás referidas condicionarão a política económica no futuro próximo e estão mais activas agora do que há 5-10 anos. Qualquer opção de política económica que ignore esta realidade, e que se foque em estímulos de curto prazo, está condenada ao fracasso, por muito bem intencionada que seja. Para que a economia portuguesa não volte à situação de emergência dos últimos anos, é fundamental não enterrar a memória dos erros, nem o correcto entendimento dos factos.
Economista
24 Setembro 2015, 19:49 por Carlos Almeida Andrade
Negócios
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