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O medo
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O medo
“Zé dos Pneus garantia que a grande intervenção de Salazar foi a implementação do medo”.
Foste votar?
- Lá fui...
- E votaste bem?
- Acho que não! Tive medo!
Baixa o silêncio, enquanto puxam por um cigarro. Os dois homens estão sentados numa esplanada de Lisboa. Andam pelos 70 anos. Como sempre, a conversa avança para pequenas histórias da guerra em África, onde se tornaram camaradas de armas e confidências. Histórias sem princípio nem fim, lampejos do que se terá passado pelas bolanhas da Guiné-Bissau. Falam mais dos mortos do que dos vivos. Tentam as piadas gastas do "lembras-te daquela vez em que o Alcântara foi às gajas..." Os dois combateram e sobreviveram. Rapazes das serras beirãs, nenhum deles teve alguma vez a veleidade de pronunciar "tenho medo" durante as operações no mato. Recordam as coragens do transmontano que oferecia o peito às balas em cima do Unimog, do alentejano que corria para os "turras" de G-3 em riste, do sentinela tripeiro que cantava o fado no breu da noite, para logo enrouquecer em gritos: "Venham cá, turras filhos da puta!"
O meu amigo Zé dos Pneus garantia que a grande invenção de Salazar foi a implantação do medo – medo da Pide e da repressão, medo de se pronunciarem contra o regime, medo de perderem o emprego, medo de que tudo voltasse à bagunçada da Primeira República. Os portugueses, como sentenciou António Damásio, resistiram através de emoções como o medo, emoção fundamental para os processos de decisão e de sobrevivência humanos. O problema só se torna grave quando o medo se transforma em emoção anormal e deturpa o processo de planeamento e decisão. Os dois veteranos lembram-se bem das investidas dos "malucos cacimbados" que não tinham medo de nada. O meu amigo Zé, que foi à guerra mas nunca leu Brecht, havia de adorar a peça ‘Vida de Galileu’, onde se proclama: "Infeliz a terra que não tem heróis/ Não! Infeliz a terra que precisa de heróis!" Ontem como hoje, há que esconder a verdade das coisas, quanto mais não seja através do medo. O astrónomo foi obrigado pela Inquisição a negar que a Terra gira em torno do Sol. Como dizia Andrea, assistente de Galileu, "quem não sabe a verdade é estúpido e mais nada. Mas quem sabe, e diz que é mentira, esse é um criminoso!"
Puxada a última passa, um dos homens lança pergunta dúbia: "E tu?! Tiveste medo?" O amigo confessa: "Uma vez, lá na Guiné, borrei-me de medo!" O homem que teve medo de "votar bem" acaba a manifestar a sua vergonha. "Pois é! Coragem a sério é a gente ter medo e, ainda assim, ir na mesma para a cabeça do boi!" lD
11.10.2015 00:59
VICTOR BANDARRA
Jornalista
Correio da Manhã
Foste votar?
- Lá fui...
- E votaste bem?
- Acho que não! Tive medo!
Baixa o silêncio, enquanto puxam por um cigarro. Os dois homens estão sentados numa esplanada de Lisboa. Andam pelos 70 anos. Como sempre, a conversa avança para pequenas histórias da guerra em África, onde se tornaram camaradas de armas e confidências. Histórias sem princípio nem fim, lampejos do que se terá passado pelas bolanhas da Guiné-Bissau. Falam mais dos mortos do que dos vivos. Tentam as piadas gastas do "lembras-te daquela vez em que o Alcântara foi às gajas..." Os dois combateram e sobreviveram. Rapazes das serras beirãs, nenhum deles teve alguma vez a veleidade de pronunciar "tenho medo" durante as operações no mato. Recordam as coragens do transmontano que oferecia o peito às balas em cima do Unimog, do alentejano que corria para os "turras" de G-3 em riste, do sentinela tripeiro que cantava o fado no breu da noite, para logo enrouquecer em gritos: "Venham cá, turras filhos da puta!"
O meu amigo Zé dos Pneus garantia que a grande invenção de Salazar foi a implantação do medo – medo da Pide e da repressão, medo de se pronunciarem contra o regime, medo de perderem o emprego, medo de que tudo voltasse à bagunçada da Primeira República. Os portugueses, como sentenciou António Damásio, resistiram através de emoções como o medo, emoção fundamental para os processos de decisão e de sobrevivência humanos. O problema só se torna grave quando o medo se transforma em emoção anormal e deturpa o processo de planeamento e decisão. Os dois veteranos lembram-se bem das investidas dos "malucos cacimbados" que não tinham medo de nada. O meu amigo Zé, que foi à guerra mas nunca leu Brecht, havia de adorar a peça ‘Vida de Galileu’, onde se proclama: "Infeliz a terra que não tem heróis/ Não! Infeliz a terra que precisa de heróis!" Ontem como hoje, há que esconder a verdade das coisas, quanto mais não seja através do medo. O astrónomo foi obrigado pela Inquisição a negar que a Terra gira em torno do Sol. Como dizia Andrea, assistente de Galileu, "quem não sabe a verdade é estúpido e mais nada. Mas quem sabe, e diz que é mentira, esse é um criminoso!"
Puxada a última passa, um dos homens lança pergunta dúbia: "E tu?! Tiveste medo?" O amigo confessa: "Uma vez, lá na Guiné, borrei-me de medo!" O homem que teve medo de "votar bem" acaba a manifestar a sua vergonha. "Pois é! Coragem a sério é a gente ter medo e, ainda assim, ir na mesma para a cabeça do boi!" lD
11.10.2015 00:59
VICTOR BANDARRA
Jornalista
Correio da Manhã
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