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Saudades do comunismo
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Saudades do comunismo
Estava eu a escrever este artigo quando me chegou a seguinte notícia: «Svetlana Alexievich ganhou o Nobel da Literatura». A terrível coincidência é que o artigo versava precisamente sobre a última obra desta escritora! E começava assim: «Já escrevi sobre este livro, mas não resisto a fazê-lo segunda vez. É um livro que devia ser de leitura obrigatória, tal a quantidade de ensinamentos que nos traz sobre o ser humano, a política em geral e os regimes totalitários em particular».
No tempo da União Soviética as pessoas tinham a sua segurança - e depois perderam-na. Antes havia lei e ordem - e deixou de haver. Isso explica as saudades do comunismo
É verdade que, após a queda da União Soviética, o antigo império comunista mergulhou praticamente na barbárie. Fizeram-se as maiores patifarias. Antes, as pessoas viviam debaixo do medo, não tinham liberdade, habitavam em casas minúsculas, várias famílias por apartamento, mas o sistema dava-lhes segurança. Ora a liberdade veio pôr tudo em causa. Houve pessoas expulsas de casa, pessoas perseguidas, roubos, saques, assassínios, trinta por uma linha.
Instalou-se o caos. Homens que trabalhavam juntos, ombro com ombro, tornaram-se de um dia para o outro inimigos mortais. Houve pogroms, limpezas raciais como no tempo nazi. Na Rússia, na Chechénia, na Ucrânia, na Moldávia, quem não fosse russo, checheno, ucraniano ou moldavo era perseguido, espancado e às vezes morto. Como na perseguição aos judeus, houve pessoas escondidas em sótãos durante meses com as portas trancadas com pregos. Um horror.
No tempo do comunismo as pessoas tinham a sua segurança - e depois perderam-na. Antes havia lei e ordem - e deixou de haver. Isso explica as saudades do comunismo. Muitos interrogam-se: para que serve a democracia? Para se poderem comer hambúrgueres, comprar calças de ganga e beber Coca-Cola?
Curiosamente, poucos no livro falam em liberdade. Para os russos, a liberdade não é aparentemente muito importante. Em Portugal, depois do 25 de Abril, a palavra que mais se ouvia era mesmo ‘liberdade’. Mas ali quase está ausente. O que os russos parecem valorizar mais é a autoridade, a ordem. E também o facto de antes terem uma ‘causa’. Muitos dos entrevistados, que até à queda da URSS eram pessoas do partido ou que trabalhavam para o partido, falam desse vazio. Criticam a voragem do consumo. Explicam que no passado tinham um objetivo por que lutar - a construção do comunismo, pela qual eram capazes de fazer tudo -, e deixaram de ter.
O Fim do Homem Soviético não é um romance, nem um ensaio, nem uma mistura dos dois. É uma colagem de depoimentos, que por vezes até resulta confusa. Mas os relatos são fortíssimos, esmagadores.
Reproduzo dois deles de memória, que dão o ambiente que se vivia na época de Estaline, contados por antigos elementos do Exército Vermelho.
O primeiro refere-se a um jovem soldado que fazia escolta a um comboio que transportava deportados para a Sibéria. No interior do comboio as temperaturas chegavam a atingir 40 graus negativos, e os deportados iam como gado, transportados em vagões fechados, sem janelas, trancados por fora. Muitos morriam no caminho. Por curiosidade, o soldado abriu a fechadura de uma carruagem e espreitou para dentro. No interior viajava uma família. O pai estava pendurado de um cinto, a um canto, enforcado. A mulher estava acocorada com os filhos à frente. Estes comiam as fezes, porque não havia nada para comer.
O soldado foi reportar isto a um oficial e ouviu uma reprimenda: não tinha nada que ver o que se passava no interior dos vagões.
Outra história arrepiante é contada por um antigo carrasco. Todos os dias havia execuções e o carrasco chegava a casa a cheirar a sangue. O cheiro a sangue humano já não se despegava dele por mais que se lavasse. A família queixava-se. O seu trabalho era encostar a pistola à têmpora do condenado à morte e disparar. Aqueles que choravam e pediam clemência não mereciam a sua consideração. Os que lhe custava executar eram os que se mantinham firmes até ao fim e o olhavam nos olhos.
Este homem, que todos os dias matava, vivia entretanto na angústia de ser morto. Porque os carrascos eram mortos de tempos a tempos, para não ficarem como testemunhas do terror. Este salvou-se. Depois do fim da URRS temeu ser reconhecido e linchado. Mas conseguiu fugir para os EUA e reconstruir a vida.
Ao lermos este livro, sentimos um duplo arrepio. Vemos o que é o terror de Estado na sua expressão mais crua, contra o qual é impossível lutar. Mas vemos também que as pessoas se podem habituar a ele - e até defendê-lo e colaborar com ele. Havia pessoas que denunciavam à polícia os próprios familiares, acusando-os de serem contra-revolucionários. Sabendo que os estavam a condenar à morte.
Um jovem engenheiro que, numa repartição pública, depois de um tempo de espera, disse qualquer coisa como: «Depois de 30 anos de comunismo, ainda temos de esperar uma hora por um documento», viu a polícia ir buscá-lo a casa no dia seguinte - e desde aí nunca mais ninguém o viu.
Repito: nada disto foi escrito por reacionários, nem pela direita, nem por inimigos da URSS - foi escrito pela Nobel da Literatura deste ano com base em testemunhos de responsáveis do regime comunista e de executores das ordens vindas de cima.
Isso torna o livro mais dramático e impressionante. Porque todos defendem o horror. Adaptaram-se ao horror e justificam-no. Eu gostaria que todos os dirigentes e militantes do PCP lessem este livro. Por um lado, sentir-se-iam orgulhosos: porque muitos entrevistados continuam a dizer-se comunistas; por outro lado, perceberiam que as atrocidades praticadas na União Soviética - que o PCP nunca teve a coragem de denunciar e das quais nunca se demarcou - não são uma invenção dos anticomunistas.
Aquilo foi mesmo assim. Um terrível pesadelo. Que ficou como prova de que o comunismo só é aplicável através da força bruta.
jas@sol.pt
José António Saraiva | 23/10/2015 13:56
SOL
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