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A arte de andar nas ruas de Lisboa

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Mensagem por Admin Sáb Dez 05, 2015 11:55 am

Da janela, podes ver como a ponte velha e o Cristo se suspendem na névoa, a luz branca e gasosa engolfando os telhados como uma zibelina num pescoço de mulher; as antenas de TV são agora esqueletos de peixe secando ferrugem sob o sol da manhã, os sinos marcam a hora certa e a cidade espreita finalmente através do nevoeiro: uma esperança de calor assim que sais para a rua, caminhando no lado soalheiro do passeio, cruzando a Praça das Flores onde os mitras de boné já fumam canhões de chamon - "Cola-me aí duas mortalhas e faz-me um filtro" -, acenando-te com a cabeça quando dizes "Bom-dia" e respondendo "Coméqueé?" da mesma maneira que as suas avós, mais cerimoniosas, te cumprimentam na pastelaria, falando sobre casacos de malha e consultas no médico da Caixa, os seus cabelos arroxeados reverberando a eletricidade estática das horas passadas diante da TV, e uma empregada de mesa brasileira a servir de amparo para a solidão, "Ó Kelly, viste na revista que a atriz da novela tem cancro?"

Desces a Rua Nova da Piedade, a Rua de São Bento, cruzas-te com o elétrico, um comboiozinho de brincar, a montanha-russa dos turistas colados nas janelas e, lá dentro, um borbulhar de mapas e de telefones disparando fotografias. A campainha metálica, tocada pelo guarda-freio, queixa-se de mais um carro em segunda fila, uma cena tão típica como a resposta do dono do carro que sai do café e diz "Estava a trabalhar, chefe", com a mesma segurança e bonomia com que um dos observadores no passeio faz rolar o palito de um canto para o outro da boca.

Continuas a pé, espreitas o Largo de Jesus e ouves os miúdos do Liceu Passos Manuel no intervalo, um turbilhão de vozes e testosterona e gritinhos capazes de evocar em ti os outonos no colégio com a mesma precisão com que as folhas dos plátanos - bronze, cobre e ouro - dissipam o seu cheiro molhado de recreio de escola primária. Sobes a Calçada do Combro e, ao passar pela Bica, tentas ver a surpresa do rio. Estás orgulhoso como quando informas os teus amigos estrangeiros de que em Lisboa há duas coisas que aparecem sempre nos lugares mais inesperados: o Tejo e palmeiras.

Atravessas o Camões e as miúdas giras e galgazes do Chiado marcham as botas de inverno na calçada, sobem e descem a Rua Garrett, galopando em sintonia com a banda sonora dos seus fones, lançando um rasto de vapores de champô e perfume que se entrelaça no fumo das castanhas. Sacos de compras passam diante das igrejas onde o menino Jesus se fez homem e já anuncia a Páscoa na eternidade da cruz - além do Tejo e das palmeiras, também podes esperar igrejas tão ubíquas como cafés Starbucks em Nova Iorque, por vezes, uma à frente da outra, uma promessa de salvação em cada lado da rua.

Paras para engraxar os sapatos e o desdentado, que maneja a escova, apresenta-se na companhia de um maluquinho zarolho que lhe serve de claque. O engraxador dá-te uma palestra de política e explica-te, com detalhe, como se pode montar um plano para eliminar os malandros em prisão domiciliária - "É matá-los todos", assente o zarolho, a mão estendida para uma moedinha.

As músicas natalícias escapam-se das lojas para piscar, tal e qual as luzes da árvore, na tua cabeça o dia inteiro. Mas nos Restauradores não encontras o Pai Natal de quando eras pequeno e o seu trenó com renas amarelas de madeira já só existe nas fotografias que os pais compravam com notas de cem escudos, polaroids agora estioladas em álbuns de toda a cidade e, numa delas, tu e o teu irmão com camisolas iguais, segurando balões, o sorriso de quem acabou de ver uma aventura do Bud Spencer no cinema, os cartazes do Condes agigantando ainda mais os heróis da pancadaria em saloons do faroeste.

No Rossio, onde em 1506 se massacram centenas de judeus, vês agora chineses, indianos, paquistaneses, africanos, brasileiros, ucranianos e, ao passar pela Rua Augusta e a sua correnteza de turistas, não deixas de pensar que tiveste muita sorte no sorteio que decidiu o lugar e o ano do teu nascimento, que as ruas e praças desta cidade já foram muito mais ignorantes, esquálidas e sanguíneas.

Desembocas no Cais das Colunas, sentindo o apelo que, desde criança, te chegava dos navios que abandonavam a barra, a pulsão para ires com eles quando ainda nem sequer suspeitavas de que o regresso seria sempre parte da viagem. Sentas-te num banco da pracinha em frente à Casa dos Bicos, admirando o rio e umas quantas palmeiras desemparelhadas, sabendo perfeitamente que Lisboa é a tua namorada mais antiga, certo do erro do adágio que te aconselha a nunca voltares a um lugar onde já foste feliz. E talvez seja por isso, como num jogo de espelhos, que sais de casa tantas vezes para andar pela cidade, mesmo sem rumo certo, subindo escadinhas e descendo travessas, crente de que, em vez do teu reflexo nas montras, é nestas ruas que emerge tudo aquilo que és, que foste e que deixaste de ser.

*Escritor

05 DE DEZEMBRO DE 2015
00:02
Hugo Gonçalves
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