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“A essência de Portugal”
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“A essência de Portugal”
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão, não existe uma “essência” de Portugal, mas existem constantes culturais pelas quais é possível lançar a hipótese da existência de um seu perfil histórico global
Em texto com o título citado, publicado no PÚBLICO de 28 de Março passado, o sociólogo João Teixeira Lopes, autor cuja obra admiramos, vem, não propriamente criticar, mas “desconstruir” afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa proferidas no recente discurso de tomada de posse como Presidente da República, evidenciando-lhes a sua raiz sociológica.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão: não existe uma “essência” metafísica individualizadora de Portugal, nem um desígnio divino singularizador do nosso país, como se se tratasse de um segundo povo “eleito de Deus”.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão, Portugal tem sido socialmente “feito” segundo a facticidade do momento e a historicidade das situações conjunturais de carácter político, e, desde a sua fundação, segundo um enquadramento internacional eminentemente europeu.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão, constitui um “simplismo” conceptual identificar a história de Portugal com a saudade (Teixeira de Pascoaes), o Quinto Império (F. Pessoa), a Idade do Espírito Santo (Agostinho da Silva), o sebastianismo (D. João de Castro, neto, frei Sebastião de Paiva, Pe. António Vieira na versão joanista – D. João IV)…
Mas – e não se trata de uma crítica ao autor, antes de uma partilha de conhecimentos e da manifestação de um conjunto de argumentos racionais não visíveis no texto de J. Teixeira Lopes – sob e sobre a facticidade e a historicidade conjunturais, determinantes na construção da história das instituições fundamentais de Portugal, inclusive da mentalidade popular cristalizada no Estado, na Igreja, na Educação, na Família…, não coexistirão, transversal e transtemporalmente constantes culturais que, ainda que disseminadas na sua aplicação social, compõem um perfil, um recorte, mesmo que esfumado, uma constituição psíquica, uma arquitectónica sentimental que, no seu conjunto, no horizonte das nações e dos povos europeus, pode(ria) ser designado como “identidade” de Portugal e dos portugueses, espécie de a priori ou padrão cultural que cada português herdaria por via da integração nas suas instituições fundamentais?
Foi a esta identidade difusa de Portugal que o novo Presidente da República se referiu. Não a quadros sociais e políticos, sempre mutáveis, mas a constantes culturais, a uma espécie de arqueologia espiritual (admitindo como correcta esta palavra desprovida de um significado religioso) do português.
Dir-me-á J. Teixeira Lopes que também estas constantes culturais são sociologicamente construídas, não são geradas por chancela divina. Sim, é verdade. Elas reflectirão, porém, não a mudança social contínua, que o autor parece sobrevalorizar, mas os elementos permanentes, duradouros, das relações sociais em Portugal:
1. - o contínuo desprezo que as elites no poder manifestam pela população (de que tivemos como subido exemplo o recente governo de P. Passos Coelho), donde emana a espantosa permanência do sebastianismo ao longo de quatro séculos (a crença de que alguém ou algo superior, Deus, um fidalgo, o patrão, um vizinho, a lotaria, o euromilhões, nos virá salvar a existência);
2. - a enformação cultural católica tridentina, omnipotente até ao 25 de Abril de 1974, atribuindo um poder majestoso à Igreja na formação e condução das mentalidades, ainda hoje visível no hiperbólico culto mariano em Portugal (Fátima, visitada anualmente por cinco milhões de portugueses), donde porventura emanará uma espiritualidade lírica, amorosa, comunitária, disponível para a crença em milagres, de que Marcelo Rebelo de Sousa falou no seu discurso, uma das explicações culturais do lirismo estético que atravessa a totalidade da literatura portuguesa;
3. - a crença manuelina (D. Manuel I), que impregnou a totalidade da cultura política do século XVI, com graves consequências no século seguinte, da construção do Império como desígnio divino, simbolizado na esfera armilar, donde porventura emanará o duplo complexo comportamental bem nacional de exaltação de virtudes próprias seguido de desvalorização das mesmas, húmus cultural mais propício a revoluções (atitudes extremadas) do que a reformas;
4. - a constante portuguesa do fenómeno da emigração das populações como escape ao desprezo manifestado pela elite nacional, que para si suga(va) a totalidade da riqueza e o conjunto de oportunidades, primeiro para os territórios do Império, depois para o Brasil, a Venezuela, a Argentina, finalmente para a Europa, terreno cultural donde possivelmente se cristalizará o sentimento de saudade (embora teorizado anteriormente, já que faz parte das definições do Leal Conselheiro de D. Duarte).
Por todos estes – e outros – motivos se tornou um verdadeiro problema a questão da “identidade” portuguesa. Eduardo Lourenço resumiu-a lapidarmente, postulando que em Portugal se sofre de uma “hiperidentidade”, não de falta de identidade, mas do seu excesso, gerando o “irrealismo prodigioso dos portugueses” (Labirinto da Saudade, 1978), tão bem caracterizado por Boaventura de Sousa Santos em Pela Mão de Alice (1994).
Enfim, não sabemos se é suficientemente convencível o conjunto de argumentos que aqui colámos um pouco improvisadamente, abrindo uma outra via de interpretação pertinente a outros horizonte, porventura menos sociológicos e mais culturais e históricos. E, já agora, exprimir o nosso orgulho pessoal na existência de um Presidente cujos textos, mesmo que manifestando a sua experiência de vida, a sua facticidade e historicidade, como J. Teixeira Lopes realça, reflectem uma valiosa apreciação cultural da história de Portugal. Já era tempo…
Em conclusão: sim, J. Teixeira Lopes tem razão, não existe uma “essência” de Portugal, mas existem constantes culturais pelas quais é possível lançar a hipótese da existência de um seu perfil histórico global, sem que este perfil possua um valor ontológico e substancial, postulando a existência de uma “cultura portuguesa” como, sem preconceito, admitimos a existência de “cultura romana” ou “cultura céltica”.
Por Miguel Real
31/03/2016 - 00:50
Público
Em texto com o título citado, publicado no PÚBLICO de 28 de Março passado, o sociólogo João Teixeira Lopes, autor cuja obra admiramos, vem, não propriamente criticar, mas “desconstruir” afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa proferidas no recente discurso de tomada de posse como Presidente da República, evidenciando-lhes a sua raiz sociológica.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão: não existe uma “essência” metafísica individualizadora de Portugal, nem um desígnio divino singularizador do nosso país, como se se tratasse de um segundo povo “eleito de Deus”.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão, Portugal tem sido socialmente “feito” segundo a facticidade do momento e a historicidade das situações conjunturais de carácter político, e, desde a sua fundação, segundo um enquadramento internacional eminentemente europeu.
Sim, J. Teixeira Lopes tem razão, constitui um “simplismo” conceptual identificar a história de Portugal com a saudade (Teixeira de Pascoaes), o Quinto Império (F. Pessoa), a Idade do Espírito Santo (Agostinho da Silva), o sebastianismo (D. João de Castro, neto, frei Sebastião de Paiva, Pe. António Vieira na versão joanista – D. João IV)…
Mas – e não se trata de uma crítica ao autor, antes de uma partilha de conhecimentos e da manifestação de um conjunto de argumentos racionais não visíveis no texto de J. Teixeira Lopes – sob e sobre a facticidade e a historicidade conjunturais, determinantes na construção da história das instituições fundamentais de Portugal, inclusive da mentalidade popular cristalizada no Estado, na Igreja, na Educação, na Família…, não coexistirão, transversal e transtemporalmente constantes culturais que, ainda que disseminadas na sua aplicação social, compõem um perfil, um recorte, mesmo que esfumado, uma constituição psíquica, uma arquitectónica sentimental que, no seu conjunto, no horizonte das nações e dos povos europeus, pode(ria) ser designado como “identidade” de Portugal e dos portugueses, espécie de a priori ou padrão cultural que cada português herdaria por via da integração nas suas instituições fundamentais?
Foi a esta identidade difusa de Portugal que o novo Presidente da República se referiu. Não a quadros sociais e políticos, sempre mutáveis, mas a constantes culturais, a uma espécie de arqueologia espiritual (admitindo como correcta esta palavra desprovida de um significado religioso) do português.
Dir-me-á J. Teixeira Lopes que também estas constantes culturais são sociologicamente construídas, não são geradas por chancela divina. Sim, é verdade. Elas reflectirão, porém, não a mudança social contínua, que o autor parece sobrevalorizar, mas os elementos permanentes, duradouros, das relações sociais em Portugal:
1. - o contínuo desprezo que as elites no poder manifestam pela população (de que tivemos como subido exemplo o recente governo de P. Passos Coelho), donde emana a espantosa permanência do sebastianismo ao longo de quatro séculos (a crença de que alguém ou algo superior, Deus, um fidalgo, o patrão, um vizinho, a lotaria, o euromilhões, nos virá salvar a existência);
2. - a enformação cultural católica tridentina, omnipotente até ao 25 de Abril de 1974, atribuindo um poder majestoso à Igreja na formação e condução das mentalidades, ainda hoje visível no hiperbólico culto mariano em Portugal (Fátima, visitada anualmente por cinco milhões de portugueses), donde porventura emanará uma espiritualidade lírica, amorosa, comunitária, disponível para a crença em milagres, de que Marcelo Rebelo de Sousa falou no seu discurso, uma das explicações culturais do lirismo estético que atravessa a totalidade da literatura portuguesa;
3. - a crença manuelina (D. Manuel I), que impregnou a totalidade da cultura política do século XVI, com graves consequências no século seguinte, da construção do Império como desígnio divino, simbolizado na esfera armilar, donde porventura emanará o duplo complexo comportamental bem nacional de exaltação de virtudes próprias seguido de desvalorização das mesmas, húmus cultural mais propício a revoluções (atitudes extremadas) do que a reformas;
4. - a constante portuguesa do fenómeno da emigração das populações como escape ao desprezo manifestado pela elite nacional, que para si suga(va) a totalidade da riqueza e o conjunto de oportunidades, primeiro para os territórios do Império, depois para o Brasil, a Venezuela, a Argentina, finalmente para a Europa, terreno cultural donde possivelmente se cristalizará o sentimento de saudade (embora teorizado anteriormente, já que faz parte das definições do Leal Conselheiro de D. Duarte).
Por todos estes – e outros – motivos se tornou um verdadeiro problema a questão da “identidade” portuguesa. Eduardo Lourenço resumiu-a lapidarmente, postulando que em Portugal se sofre de uma “hiperidentidade”, não de falta de identidade, mas do seu excesso, gerando o “irrealismo prodigioso dos portugueses” (Labirinto da Saudade, 1978), tão bem caracterizado por Boaventura de Sousa Santos em Pela Mão de Alice (1994).
Enfim, não sabemos se é suficientemente convencível o conjunto de argumentos que aqui colámos um pouco improvisadamente, abrindo uma outra via de interpretação pertinente a outros horizonte, porventura menos sociológicos e mais culturais e históricos. E, já agora, exprimir o nosso orgulho pessoal na existência de um Presidente cujos textos, mesmo que manifestando a sua experiência de vida, a sua facticidade e historicidade, como J. Teixeira Lopes realça, reflectem uma valiosa apreciação cultural da história de Portugal. Já era tempo…
Em conclusão: sim, J. Teixeira Lopes tem razão, não existe uma “essência” de Portugal, mas existem constantes culturais pelas quais é possível lançar a hipótese da existência de um seu perfil histórico global, sem que este perfil possua um valor ontológico e substancial, postulando a existência de uma “cultura portuguesa” como, sem preconceito, admitimos a existência de “cultura romana” ou “cultura céltica”.
Por Miguel Real
31/03/2016 - 00:50
Público
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