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A putrefacção saiu da clandestinidade
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A putrefacção saiu da clandestinidade
Agora deixou de ser possível tergiversar, de empurrar o problema com a barriga, de o eternizar com os limites da soberania ou com os custos inevitáveis da globalização
A dimensão do escândalo revelado pelos Panama Papers apareceu aos olhos de todos nós já não como uma ferida mas como uma gangrena que ameaça amputar a já de si frágil transparência do sistema financeiro, mas também a legitimidade que resta às democracias ocidentais. Se a quarta maior sociedade do mundo na gestão de negócios com paraísos fiscais é capaz de trazer à luz negócios duvidosos de uma dúzia de governantes, de centenas de políticos, de milhares de celebridades ou de centenas de milhar de empresas, o que estará debaixo do manto do segredo das suas concorrentes? Ou há uma réstia de decência para atacar de frente este esterco que torna o mundo um lugar imundo, ou tarde ou cedo acabaremos afectados pelos vírus da sonegação fiscal, da corrupção ou dos lucros do crime violento e organizado.
O grande legado do trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação é essa mola que faz disparar a indignação e a coloca no centro do debate público. Quando há denúncias de negócios duvidosos entre multinacionais e um Estado, como aconteceu no Luxemburgo, pode-se tentar asfixiar o assunto nas habituais justificações da contabilidade criativa, do planeamento fiscal agressivo ou da cobertura legal que, por excelsa generosidade dos Estados, normalmente protege a banca. Mas quando se chega a uma galáxia com a dimensão dos 11.5 milhões de ficheiros gerados pelos escritórios da Mossak Fonseca, deixa de haver sentido para a desculpa ou a explicação.
Governos, Comissão Europeia, FMI, OCDE, G-8 ou G-20 há muito que conhecem a real dimensão do problema. A fuga aos impostos na Europa foi estimada como correspondendo a 2000 euros/ano por cada um dos 500 milhões de cidadãos da União. As perdas para os países pobres ascendem a 125 mil milhões de euros por ano, uma verdadeira sangria de recursos indispensáveis para, em muitos casos, erradicar doenças endémicas ou garantir níveis nutricionais mínimos a dezenas de milhões de pessoas. Ao todo, o dinheiro depositado em paraísos fiscais pode representar até o dobro da riqueza anual produzida pelo bloco económico mais rico do mundo, a União Europeia. Sem poderem esconder a grandeza da putrefacção, quem governa ou quem lidera organizações internacionais lá foi colocando o problema na agenda. O que não quer dizer que o problema tenha alguma vez sido atacado de frente.
Com os Panama Papers, o cancro dos offshore sai definitivamente da esfera mansa do poder (e dos partidos da esquerda, que o têm ajudado a manter na actualidade) e instala-se na preocupação geral. O bom jornalismo voltou a prestar um inestimável serviço às sociedades abertas. Daqui para a frente, deixou de ser possível assobiar para o lado. A evasão fiscal e a corrupção dos mais poderosos está por todo o lado. O cidadão comum fica afinal a perceber que é ele e os que não dispõem de dinheiro para alimentar cadeias de fuga para paraísos fiscais quem alimenta as funções sociais e de soberania do Estado. Pode suspeitar que, afinal, o estado social não está em crise apenas por causa da demografia ou do aumento dos custos com a saúde ou a educação. É capaz até de entender por que razão países que enriqueceram tanto no pós-guerra dispõem hoje de Estados cada vez mais pobres e deficitários. Mais do que um problema de desigualdade na distribuição de rendimentos, a existência de uma rede tão vasta de pessoas e empresas que se eximem às suas responsabilidades sociais é um retrocesso que destrói essa magnífica e poderosa construção civilizacional que nos diz todos iguais perante a lei.
A luta a favor da transparência dos offshore será longa e incerta. Os interesses dos seus beneficiários são poderosos. A venalidade do poder político e financeiro é imensa. Haverá sempre um Estado falhado ou uma república das bananas pronta a tapar os olhos para beneficiar do afluxo de capitais. E nenhum país isolado consegue atacar uma doença com tantas metástases. Mas, se nos últimos anos houve uma oportunidade para o tentar, essa oportunidade está à nossa frente. A teia clandestina foi trazida à luz. O conforto da opacidade rompeu-se. Quem tem dinheiro nas Ilhas Virgens Britânicas ou no Panamá tem razões para ter medo. Vai haver centenas de inquéritos judiciais baseados nos ficheiros agora conhecidos. O fio da meada pode, enfim, começar a ser puxado.
Não há alternativa. Todos os riscos são preferíveis ao risco de aceitar que o vírus da fraude e do crime tenha direito a paraísos. Essa é a grande lição dos Panama Papers. Passado o primeiro impacto do asco, fique-se pois com a satisfação de ver que talvez tenha chegado a hora se atacar as suas causas.
MANUEL CARVALHO
04/04/2016 - 21:14
Público
A dimensão do escândalo revelado pelos Panama Papers apareceu aos olhos de todos nós já não como uma ferida mas como uma gangrena que ameaça amputar a já de si frágil transparência do sistema financeiro, mas também a legitimidade que resta às democracias ocidentais. Se a quarta maior sociedade do mundo na gestão de negócios com paraísos fiscais é capaz de trazer à luz negócios duvidosos de uma dúzia de governantes, de centenas de políticos, de milhares de celebridades ou de centenas de milhar de empresas, o que estará debaixo do manto do segredo das suas concorrentes? Ou há uma réstia de decência para atacar de frente este esterco que torna o mundo um lugar imundo, ou tarde ou cedo acabaremos afectados pelos vírus da sonegação fiscal, da corrupção ou dos lucros do crime violento e organizado.
O grande legado do trabalho do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação é essa mola que faz disparar a indignação e a coloca no centro do debate público. Quando há denúncias de negócios duvidosos entre multinacionais e um Estado, como aconteceu no Luxemburgo, pode-se tentar asfixiar o assunto nas habituais justificações da contabilidade criativa, do planeamento fiscal agressivo ou da cobertura legal que, por excelsa generosidade dos Estados, normalmente protege a banca. Mas quando se chega a uma galáxia com a dimensão dos 11.5 milhões de ficheiros gerados pelos escritórios da Mossak Fonseca, deixa de haver sentido para a desculpa ou a explicação.
Governos, Comissão Europeia, FMI, OCDE, G-8 ou G-20 há muito que conhecem a real dimensão do problema. A fuga aos impostos na Europa foi estimada como correspondendo a 2000 euros/ano por cada um dos 500 milhões de cidadãos da União. As perdas para os países pobres ascendem a 125 mil milhões de euros por ano, uma verdadeira sangria de recursos indispensáveis para, em muitos casos, erradicar doenças endémicas ou garantir níveis nutricionais mínimos a dezenas de milhões de pessoas. Ao todo, o dinheiro depositado em paraísos fiscais pode representar até o dobro da riqueza anual produzida pelo bloco económico mais rico do mundo, a União Europeia. Sem poderem esconder a grandeza da putrefacção, quem governa ou quem lidera organizações internacionais lá foi colocando o problema na agenda. O que não quer dizer que o problema tenha alguma vez sido atacado de frente.
Com os Panama Papers, o cancro dos offshore sai definitivamente da esfera mansa do poder (e dos partidos da esquerda, que o têm ajudado a manter na actualidade) e instala-se na preocupação geral. O bom jornalismo voltou a prestar um inestimável serviço às sociedades abertas. Daqui para a frente, deixou de ser possível assobiar para o lado. A evasão fiscal e a corrupção dos mais poderosos está por todo o lado. O cidadão comum fica afinal a perceber que é ele e os que não dispõem de dinheiro para alimentar cadeias de fuga para paraísos fiscais quem alimenta as funções sociais e de soberania do Estado. Pode suspeitar que, afinal, o estado social não está em crise apenas por causa da demografia ou do aumento dos custos com a saúde ou a educação. É capaz até de entender por que razão países que enriqueceram tanto no pós-guerra dispõem hoje de Estados cada vez mais pobres e deficitários. Mais do que um problema de desigualdade na distribuição de rendimentos, a existência de uma rede tão vasta de pessoas e empresas que se eximem às suas responsabilidades sociais é um retrocesso que destrói essa magnífica e poderosa construção civilizacional que nos diz todos iguais perante a lei.
A luta a favor da transparência dos offshore será longa e incerta. Os interesses dos seus beneficiários são poderosos. A venalidade do poder político e financeiro é imensa. Haverá sempre um Estado falhado ou uma república das bananas pronta a tapar os olhos para beneficiar do afluxo de capitais. E nenhum país isolado consegue atacar uma doença com tantas metástases. Mas, se nos últimos anos houve uma oportunidade para o tentar, essa oportunidade está à nossa frente. A teia clandestina foi trazida à luz. O conforto da opacidade rompeu-se. Quem tem dinheiro nas Ilhas Virgens Britânicas ou no Panamá tem razões para ter medo. Vai haver centenas de inquéritos judiciais baseados nos ficheiros agora conhecidos. O fio da meada pode, enfim, começar a ser puxado.
Não há alternativa. Todos os riscos são preferíveis ao risco de aceitar que o vírus da fraude e do crime tenha direito a paraísos. Essa é a grande lição dos Panama Papers. Passado o primeiro impacto do asco, fique-se pois com a satisfação de ver que talvez tenha chegado a hora se atacar as suas causas.
MANUEL CARVALHO
04/04/2016 - 21:14
Público
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