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“[Ó] mundo, pesa inteiro sobre ti mesmo!”
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“[Ó] mundo, pesa inteiro sobre ti mesmo!”
Lição de humanismo, não do bacoco e provinciano que vai campeando, mas do autêntico e despretensioso; do que vai escasseando.
Na senda das últimas obras publicadas de Herberto Helder, esta “Letra Aberta” póstuma escalpeliza a morte companheira presente dos pensamentos do enorme poeta (“a morte é mesmo estranha:/ morre-se todos os dias/ e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida”: p. 25). A relação é de cumplicidade e chega mesmo a ser jocosa, como nos versos em que Herberto se queixa da rapidez e da pouca solenidade do acto de perecer (“(…) os que morrem nem dão por isso/ excepto no instante mesmo/ o que é pouco para um capítulo tão peremptório”: p. 16). De igual modo, em linha de continuidade com o já vindo a público, o tema da sexualidade (ou da sua ausência) na velhice (pp. 45-47) demonstra à saciedade um autor que nunca se auto-limitou, que sempre rejeitou tabus e preconceitos.
O universo helderiano encontra-se neste pequeno livro que assinala um ano da perda de um dos maiores vultos da literatura portuguesa. Permito-me ressaltar o modo descomplexado com que se relacionou com o seu ofício, colocando a poesia no seu devido lugar: nos píncaros da existência humana e nos baixios da mesma necessidade. Assim, desconcertante, como convém: “– e eu pedi ao balcão: dê-me um poema,/ e o empregado olhou para mim estupefacto:/ – isto aqui é o mundo, monsieur, aqui não se servem bebidas alcoólicas” (p. 19). E, em outro passo, “há muita gente bárbara que escreve poemas,/ bárbaros ou não” (p. 21).
Continua a surpreender a simplicidade, a ligação íntima que o poeta mantém com o leitor, segredando-lhe, lembrando-lhe coisas, queixando-se (“leitor sempre inimigo”: p. 55). Conhecido que era o posicionamento de Herberto quanto ao “divino” (“bem sei que tanto tempo merecia a qualidade que Deus pede,/ mas tendo em conta que sou ateu tenho direito a que me tolerem a baixa”: p. 23), ele mesmo se dá conta da incindibilidade entre o que não dominamos pelos sentidos e aquilo que por via destes apreendemos. Tudo assenta num único e mesmo princípio, ainda que indizível (“a fé, a coisa cega,/ cardíaca,/ intrínseca,/ e apenas nominal tanto quanto”: p. 15). Também em “Letra Aberta” há uma conversa amistosa com uma realidade supra-terrena, com aquele sublime e subliminar humor de que só Herberto era capaz: “este papa, se eles não têm cuidado, vai salvar a leitura da poesia” (p. 60). Não terá sido por acaso que a organização, a cargo da viúva do autor, escolheu este verso para encerrar a obra. Que dizer ainda, neste ponto, do modo como é comparado o suicídio em Lisboa ou Paris, com muita mais pátina na “cidade das Luzes” (pp. 30-31)?
O tempo, sempre o tempo, Cronos impiedoso e simultaneamente desejado, como quem vira a ampulheta e deseja que ela transponha todos os grãos com a brevidade de Mercúrio: “dias um a um subtraídos ao tempo que te faltava” (p. 11). Nesta dialéctica com a mais misteriosa das realidades humanas e que nos distancia de tantos outros seres vivos – a noção da sucessão de actos e omissões encadeados numa linha espacial dominada por uma unidade temporal –, não admira que o poeta aluda ao perdão, pois só os dias passados admitem o erro e a imperfeição. Que nos diz Herberto? “[E] eu não quero mais perdões de nada” (p. 13). Não se tratará de um epitáfio ao jeito de Sinatra, mas também um dos nossos Maiores “rejubila” com os defeitos. É na sua valorização que, paradoxalmente, se constrói o carácter. Nas palavras do poeta, “bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos” (p. 35).
Existe, por certo, muito de auto-biográfico no livro ora publicado (“de um certo ponto de vista,/ ou mesmo sem ponto de vista nenhum,/ a verdade é que eu estou melhor agora/ com 84 anos”: p. 59), mas Herberto sempre foi, se tivéssemos de o resumir em uma palavra, “gente”, e a massa dessa gente obedece à mesma lei universal por muitos ornamentos que usemos para nos diferenciarmos. Lição de humanismo, não do bacoco e provinciano que vai campeando, mas do autêntico e despretensioso; do que vai escasseando.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Consultor da Abreu & Associados – Sociedade de Advogados, RL
ANDRÉ LAMAS LEITE
09/04/2016 - 06:50
Público
Na senda das últimas obras publicadas de Herberto Helder, esta “Letra Aberta” póstuma escalpeliza a morte companheira presente dos pensamentos do enorme poeta (“a morte é mesmo estranha:/ morre-se todos os dias/ e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida”: p. 25). A relação é de cumplicidade e chega mesmo a ser jocosa, como nos versos em que Herberto se queixa da rapidez e da pouca solenidade do acto de perecer (“(…) os que morrem nem dão por isso/ excepto no instante mesmo/ o que é pouco para um capítulo tão peremptório”: p. 16). De igual modo, em linha de continuidade com o já vindo a público, o tema da sexualidade (ou da sua ausência) na velhice (pp. 45-47) demonstra à saciedade um autor que nunca se auto-limitou, que sempre rejeitou tabus e preconceitos.
O universo helderiano encontra-se neste pequeno livro que assinala um ano da perda de um dos maiores vultos da literatura portuguesa. Permito-me ressaltar o modo descomplexado com que se relacionou com o seu ofício, colocando a poesia no seu devido lugar: nos píncaros da existência humana e nos baixios da mesma necessidade. Assim, desconcertante, como convém: “– e eu pedi ao balcão: dê-me um poema,/ e o empregado olhou para mim estupefacto:/ – isto aqui é o mundo, monsieur, aqui não se servem bebidas alcoólicas” (p. 19). E, em outro passo, “há muita gente bárbara que escreve poemas,/ bárbaros ou não” (p. 21).
Continua a surpreender a simplicidade, a ligação íntima que o poeta mantém com o leitor, segredando-lhe, lembrando-lhe coisas, queixando-se (“leitor sempre inimigo”: p. 55). Conhecido que era o posicionamento de Herberto quanto ao “divino” (“bem sei que tanto tempo merecia a qualidade que Deus pede,/ mas tendo em conta que sou ateu tenho direito a que me tolerem a baixa”: p. 23), ele mesmo se dá conta da incindibilidade entre o que não dominamos pelos sentidos e aquilo que por via destes apreendemos. Tudo assenta num único e mesmo princípio, ainda que indizível (“a fé, a coisa cega,/ cardíaca,/ intrínseca,/ e apenas nominal tanto quanto”: p. 15). Também em “Letra Aberta” há uma conversa amistosa com uma realidade supra-terrena, com aquele sublime e subliminar humor de que só Herberto era capaz: “este papa, se eles não têm cuidado, vai salvar a leitura da poesia” (p. 60). Não terá sido por acaso que a organização, a cargo da viúva do autor, escolheu este verso para encerrar a obra. Que dizer ainda, neste ponto, do modo como é comparado o suicídio em Lisboa ou Paris, com muita mais pátina na “cidade das Luzes” (pp. 30-31)?
O tempo, sempre o tempo, Cronos impiedoso e simultaneamente desejado, como quem vira a ampulheta e deseja que ela transponha todos os grãos com a brevidade de Mercúrio: “dias um a um subtraídos ao tempo que te faltava” (p. 11). Nesta dialéctica com a mais misteriosa das realidades humanas e que nos distancia de tantos outros seres vivos – a noção da sucessão de actos e omissões encadeados numa linha espacial dominada por uma unidade temporal –, não admira que o poeta aluda ao perdão, pois só os dias passados admitem o erro e a imperfeição. Que nos diz Herberto? “[E] eu não quero mais perdões de nada” (p. 13). Não se tratará de um epitáfio ao jeito de Sinatra, mas também um dos nossos Maiores “rejubila” com os defeitos. É na sua valorização que, paradoxalmente, se constrói o carácter. Nas palavras do poeta, “bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos” (p. 35).
Existe, por certo, muito de auto-biográfico no livro ora publicado (“de um certo ponto de vista,/ ou mesmo sem ponto de vista nenhum,/ a verdade é que eu estou melhor agora/ com 84 anos”: p. 59), mas Herberto sempre foi, se tivéssemos de o resumir em uma palavra, “gente”, e a massa dessa gente obedece à mesma lei universal por muitos ornamentos que usemos para nos diferenciarmos. Lição de humanismo, não do bacoco e provinciano que vai campeando, mas do autêntico e despretensioso; do que vai escasseando.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Consultor da Abreu & Associados – Sociedade de Advogados, RL
ANDRÉ LAMAS LEITE
09/04/2016 - 06:50
Público
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