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Eu, tu e a eutanásia
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Eu, tu e a eutanásia
Ao dizer vigorosamente aos elementos mais vulneráveis da nossa sociedade que a vida de cada um é um assunto exclusivamente seu, estamos a sussurrar-lhes que estão sozinhos no Mundo.
Li recentemente Eu e Tu, de Martin Buber, que é provavelmente o expoente máximo da filosofia dialógica moderna. Buber descreve uma sociedade baseada numa experiência permanente de diálogo. Nela, a humanidade de cada pessoa constrói-se integralmente na relação com o Outro. “Torno-me Eu no Tu; ao tornar-me Eu, digo Tu”. Torno-me mais pessoa em contacto com o Outro, e isso impele-me a reconhecê-lo como entidade semelhante a mim e estruturalmente distinta dos objectos que crio, possuo e tomo como meios. Por oposição, objectificar o Outro é um acto que me desumaniza. Uma singela constatação que se transformou na vingança poética que Buber arrastou consigo quando os nazis lhe arrancaram a sua cátedra, quando lhe coseram uma estrela amarela no braço e quando, inevitavelmente, o forçaram ao exílio, para escapar à morte.
Lembrei-me muito de Martin Buber durante estes últimos dias, a propósito de uma entrevista feita pela TSF a Verónica Rocha, enfermeira portuguesa radicada na Bélgica. No decurso do seu trabalho, Verónica viu-se obrigada a tomar parte na eutanásia de uma septuagenária saudável, mas decidida a morrer para escapar à solidão. Repugnou-se com todo o processo, horrorizou-se com a leviandade daquela desistência e tornou-se objectora de consciência.
A senhora tolhida pela solidão que Verónica ajudou a matar não era assim tão diferente de muitos doentes e acamados, afligidos por dores e frustrações e diariamente tentados pela perspectiva de uma desistência pretensamente aliviadora. A resposta que os defensores da eutanásia apresentam a estas pessoas não se resume à legalização da prática. No seu Manifesto em Defesa de uma Morte Digna assumem a pretensão de a disponibilizar “como uma escolha legítima”, mais legítima até do que escolher viver. Por isso afirmam que “a morte assistida é um acto compassivo e de beneficência”, ao mesmo tempo que descaracterizam a vida de um doente como um “sofrimento inútil e sem sentido”.
E, se questionados sobre o sentido da morte assistida, responderão porventura que se trata de um acto digno, na medida em que é voluntário. Dirão que se limitam a abrir uma porta e que cada pessoa, no acto soberano de escolher ou não transpô-la, carrega consigo as suas convicções e a sua dignidade, independentemente do que decida. Quem sabe das dores é o mortificado. E que ninguém mais se meta; que ninguém se aproxime. O problema é que a solidão também mata, como sabem Verónica e Martin Buber. O problema é que, ao dizer vigorosamente aos elementos mais vulneráveis da nossa sociedade que a vida de cada um é um assunto exclusivamente seu, estamos a sussurrar-lhes que estão sozinhos no Mundo. E estou disposto a apostar que não era bem isso que eles queriam ouvir.
Passaram-se três quartos de século desde que Hemingway, escrevendo sobre a guerra civil espanhola, descobriu que os sinos de finados, que tocavam a rebate para anunciar mais um enterro, também dobravam por ele, que sobrevivera à morte mas era tolhido pelo sofrimento. Há algo de desesperadamente humano nesse ímpeto de identificação com o Outro. Calçar os sapatos alheios; palmilhar as suas léguas; sentir os seus calos. Talvez o leitor lhe chame solidariedade, empatia ou, como Buber, Eu-Tu. Eu aprendi a chamar-lhe Caridade. Mas a designação importa pouco. Importa que há painéis de instrumentos à beira de camas de hospital que, ao apitar por outros, apitam por cada um de nós. Apitam em alerta contra um grito polido e sofisticado de emancipação do doente, que encobre muito mal um exercício colectivo de abandono das dores alheias. Recordam-nos a nossa finitude e devolvem-nos responsabilidade pelo Outro.
“Torno-me Eu no Tu; ao tornar-me Eu, digo Tu”. A eutanásia não é a morte dos outros. É a morte de todos nós.
Estudante universitário, 19 anos
António Pedro Barreiro
27/4/2016, 10:45
Observador
Li recentemente Eu e Tu, de Martin Buber, que é provavelmente o expoente máximo da filosofia dialógica moderna. Buber descreve uma sociedade baseada numa experiência permanente de diálogo. Nela, a humanidade de cada pessoa constrói-se integralmente na relação com o Outro. “Torno-me Eu no Tu; ao tornar-me Eu, digo Tu”. Torno-me mais pessoa em contacto com o Outro, e isso impele-me a reconhecê-lo como entidade semelhante a mim e estruturalmente distinta dos objectos que crio, possuo e tomo como meios. Por oposição, objectificar o Outro é um acto que me desumaniza. Uma singela constatação que se transformou na vingança poética que Buber arrastou consigo quando os nazis lhe arrancaram a sua cátedra, quando lhe coseram uma estrela amarela no braço e quando, inevitavelmente, o forçaram ao exílio, para escapar à morte.
Lembrei-me muito de Martin Buber durante estes últimos dias, a propósito de uma entrevista feita pela TSF a Verónica Rocha, enfermeira portuguesa radicada na Bélgica. No decurso do seu trabalho, Verónica viu-se obrigada a tomar parte na eutanásia de uma septuagenária saudável, mas decidida a morrer para escapar à solidão. Repugnou-se com todo o processo, horrorizou-se com a leviandade daquela desistência e tornou-se objectora de consciência.
A senhora tolhida pela solidão que Verónica ajudou a matar não era assim tão diferente de muitos doentes e acamados, afligidos por dores e frustrações e diariamente tentados pela perspectiva de uma desistência pretensamente aliviadora. A resposta que os defensores da eutanásia apresentam a estas pessoas não se resume à legalização da prática. No seu Manifesto em Defesa de uma Morte Digna assumem a pretensão de a disponibilizar “como uma escolha legítima”, mais legítima até do que escolher viver. Por isso afirmam que “a morte assistida é um acto compassivo e de beneficência”, ao mesmo tempo que descaracterizam a vida de um doente como um “sofrimento inútil e sem sentido”.
E, se questionados sobre o sentido da morte assistida, responderão porventura que se trata de um acto digno, na medida em que é voluntário. Dirão que se limitam a abrir uma porta e que cada pessoa, no acto soberano de escolher ou não transpô-la, carrega consigo as suas convicções e a sua dignidade, independentemente do que decida. Quem sabe das dores é o mortificado. E que ninguém mais se meta; que ninguém se aproxime. O problema é que a solidão também mata, como sabem Verónica e Martin Buber. O problema é que, ao dizer vigorosamente aos elementos mais vulneráveis da nossa sociedade que a vida de cada um é um assunto exclusivamente seu, estamos a sussurrar-lhes que estão sozinhos no Mundo. E estou disposto a apostar que não era bem isso que eles queriam ouvir.
Passaram-se três quartos de século desde que Hemingway, escrevendo sobre a guerra civil espanhola, descobriu que os sinos de finados, que tocavam a rebate para anunciar mais um enterro, também dobravam por ele, que sobrevivera à morte mas era tolhido pelo sofrimento. Há algo de desesperadamente humano nesse ímpeto de identificação com o Outro. Calçar os sapatos alheios; palmilhar as suas léguas; sentir os seus calos. Talvez o leitor lhe chame solidariedade, empatia ou, como Buber, Eu-Tu. Eu aprendi a chamar-lhe Caridade. Mas a designação importa pouco. Importa que há painéis de instrumentos à beira de camas de hospital que, ao apitar por outros, apitam por cada um de nós. Apitam em alerta contra um grito polido e sofisticado de emancipação do doente, que encobre muito mal um exercício colectivo de abandono das dores alheias. Recordam-nos a nossa finitude e devolvem-nos responsabilidade pelo Outro.
“Torno-me Eu no Tu; ao tornar-me Eu, digo Tu”. A eutanásia não é a morte dos outros. É a morte de todos nós.
Estudante universitário, 19 anos
António Pedro Barreiro
27/4/2016, 10:45
Observador
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