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Romantismo de Estado
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Romantismo de Estado
A cada vez que se discute a legalização do trabalho sexual, vulgo prostituição, constata-se que muita gente acha que se trata de uma atividade proibida. Se não é legal, deve ser ilegal, não é? Engano; a lei é omissa sobre este tipo de trabalho, a não ser quando considera que quem o exerce está a ser explorado (crime de lenocínio) ou obrigado (tráfico de seres humanos, prostituição de menores). Porquê? A resposta dada por quem se opõe à legalização é de que se trata do comércio de algo não disponível - como o seria vender um rim. Ter sexo por dinheiro seria pois como uma amputação, a alienação de algo de inalienável; quem o faz só pode ser uma vítima. E sendo assim, que fazemos? Mantemos a coisa clandestina - o que evidentemente ajuda imenso as alegadas vítimas.
Há decerto dezenas de milhares, se não mais, de pessoas em Portugal que comercializam sexo. E muitas mais que o compram ou compraram: em tempos um inquérito concluiu que 45% dos homens portugueses já tinham recorrido à prostituição; a estimativa pode pecar por defeito. Estamos pois ante algo com que grande parte da população - a clientela - convive alegremente e que constitui um não negligenciável setor económico do chamado "PIB oculto". É isso, só por si, motivo para regulamentar? Já oiço os césares das neves: "A seguir vão legalizar o roubo." Não; existir e ser muito comum e rentável não é só por si motivo para ser legal. Mas, recorde-se, não é proibido. Porque o nosso edifício jurídico, que consagrou a liberdade da autodeterminação sexual, não encontra nenhum motivo para punir a prostituição, nem do lado de quem vende - em nome de que bem ou direito o faria? - nem de quem compra. Apenas não tem coragem para dar o passo seguinte, que é olhá-la na cara, dar-lhe um código de IRS e coletá-la na Segurança Social, criando condições para proteger e dignificar quem a pratica.
Acabámos de aprovar no Parlamento a maternidade de substituição, que permite um contrato em que uma mulher gera em si um filho para o entregar a outros, mas não estamos preparados para legalizar um contrato comercial para ter relações sexuais? Se andamos a debater a eutanásia como direito supremo de seres livres que querem poder pedir e receber a morte quando em situação de não serem capazes de se suicidar, como podemos recusar a liberdade de trocar sexo por dinheiro? Como é que chegámos a 2016 sem ter resolvido isto? É simples: porque, apesar de haver muitos mais trabalhadores sexuais do que pessoas a precisar de contratos de maternidade de substituição, ninguém fala pelos primeiros e ninguém se quer pôr no lugar deles. Para lá do mero moralismo religioso e da não admissão da liberdade individual, o que trava a legalização da prostituição é aceitar que algo tão íntimo como o sexo pode ser objeto de um contrato passageiro no qual tacitamente se risca a cláusula disso a que chamamos amor. Em última análise, esta recusa é uma forma autoritária de romantismo. Já crescíamos.
20 DE MAIO DE 2016
00:02
Fernanda Câncio
Diário de Notícias
Há decerto dezenas de milhares, se não mais, de pessoas em Portugal que comercializam sexo. E muitas mais que o compram ou compraram: em tempos um inquérito concluiu que 45% dos homens portugueses já tinham recorrido à prostituição; a estimativa pode pecar por defeito. Estamos pois ante algo com que grande parte da população - a clientela - convive alegremente e que constitui um não negligenciável setor económico do chamado "PIB oculto". É isso, só por si, motivo para regulamentar? Já oiço os césares das neves: "A seguir vão legalizar o roubo." Não; existir e ser muito comum e rentável não é só por si motivo para ser legal. Mas, recorde-se, não é proibido. Porque o nosso edifício jurídico, que consagrou a liberdade da autodeterminação sexual, não encontra nenhum motivo para punir a prostituição, nem do lado de quem vende - em nome de que bem ou direito o faria? - nem de quem compra. Apenas não tem coragem para dar o passo seguinte, que é olhá-la na cara, dar-lhe um código de IRS e coletá-la na Segurança Social, criando condições para proteger e dignificar quem a pratica.
Acabámos de aprovar no Parlamento a maternidade de substituição, que permite um contrato em que uma mulher gera em si um filho para o entregar a outros, mas não estamos preparados para legalizar um contrato comercial para ter relações sexuais? Se andamos a debater a eutanásia como direito supremo de seres livres que querem poder pedir e receber a morte quando em situação de não serem capazes de se suicidar, como podemos recusar a liberdade de trocar sexo por dinheiro? Como é que chegámos a 2016 sem ter resolvido isto? É simples: porque, apesar de haver muitos mais trabalhadores sexuais do que pessoas a precisar de contratos de maternidade de substituição, ninguém fala pelos primeiros e ninguém se quer pôr no lugar deles. Para lá do mero moralismo religioso e da não admissão da liberdade individual, o que trava a legalização da prostituição é aceitar que algo tão íntimo como o sexo pode ser objeto de um contrato passageiro no qual tacitamente se risca a cláusula disso a que chamamos amor. Em última análise, esta recusa é uma forma autoritária de romantismo. Já crescíamos.
20 DE MAIO DE 2016
00:02
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