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Problemas de país rico
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Problemas de país rico
Nos próximos meses será essencial não esquecer que Portugal é um país rico, moderno, desenvolvido. Avizinham-se momentos de grande turbulência, aperto, dificuldade, onde será fácil perder de vista esta realidade que, no entanto, permanece indiscutível. Precisamente porque deixaremos muito do que agora gozamos, é bom não esquecer tudo o que, apesar disso, ainda temos. Uma crise conjuntural, mesmo grande, não chega a afectar a estrutura nacional.
Nos tempos áureos do império, Portugal foi o povo mais rico do mundo. Depois, durante século e meio e até há umas décadas, vimo-nos relativamente carentes e atrasados face aos vizinhos. Isso magoava-nos mais por lembrar velhas glórias. Esse amargo complexo, que os intelectuais apelidaram de "tese da decadência", deixou há muito de ter validade, embora permaneça no folclore mediático e cânone intelectual.
O último meio século transformou Portugal. O país conseguiu um desenvolvimento importante desde os anos 1950, uma democratização sólida desde os anos 1970 e uma integração internacional desde os anos 1980. Hoje somos membros de pleno direito dos clubes globais mais selectos e conceituados, de que fazemos parte há muito tempo e com naturalidade. Os graves problemas que nos assolam desde o início do século não chegam, por enquanto, para perturbar essa condição.
Quando éramos pobres tínhamos a compreensível ilusão de que atingindo a prosperidade seria tudo fácil. Agora sabemos que um país rico tem problemas; tem crises, tem pobres. Aliás, as nossas dificuldades vêm, em certa medida, precisamente de sermos ricos. As doenças que temos são semelhantes às do Japão, Itália, Espanha; não parecidas com as do Congo, Brasil, Índia, como há cem anos. Doem na mesma, mas é bom conhecer a diferença.
Os indicadores económicos não deixam dúvidas acerca da nossa fortuna. O produto por pessoa coloca-nos em 162.º lugar nos 202 países com dados. Acima de 80% dos países, que compreendem 85% da população global, como podemos não ser dos ricos? Os indicadores sociais confirmam. Na mortalidade infantil temos a 10.ª taxa mais baixa dos 28 e a 6.ª mais baixa dos 15 da União Europeia. Considerando as infraestruturas, como todos ouvimos a cada momento, estamos acima da maioria dos nossos parceiros. Aliás, foi isso mesmo que gerou a dívida que nos trouxe à crise.
Este elemento constitui o paradoxo que caracteriza a situação: boa parte da doença que nos aflige só aconteceu porque já somos ricos. Há 20 anos nunca poderíamos ter chegado aqui. O nosso problema pode ser descrito como mero deslumbramento pela participação num clube de opulentos.
Compreenderíamos isso com clareza se ouvíssemos com atenção os nossos lamentos, exigências e reivindicações; exactamente aquilo que faz explodir a despesa pública e gera boa parte da presente dificuldade. Achamo-nos com direito a reduções de horário de trabalho e subidas de salários e pensões que seriam incompreensíveis aos nossos antepassados. O salário real médio, mesmo com crise, é hoje 32% superior ao que era em 1990, enquanto a pensão média mais do que duplicou no mesmo período em termos reais.
Até os sinais negativos, sem deixarem de ser dramáticos, manifestam essa abundância. Taxas de desemprego acima de 10% eram inauditas entre nós até 2009, precisamente porque antes nunca as teríamos conseguido suportar. Num país pobre, quem não trabalha não come. Hoje, entre crianças, desempregados, pensionistas e outros inactivos, temos 56% da população sem contribuir para o sustento nacional. Além disso, cada um dos empregados já trabalha anualmente 6% menos horas do que trabalhava em 1989, e ainda acha muito.
A constatação de que somos um país rico, tão omissa das nossas discussões, tem implicações importantes na compreensão da situação. Primeiro transforma o padrão da crise, tornando a recessão bastante distinta das anteriores. O que os anos passados nos ensinaram tem-se mostrado pouco relevante em condições muito diferentes.
Por outro lado, as nossas queixas, no meio de uma abundância que os antigos nem sonhavam, trazem lições importantes. Devíamos tomar consciência que riqueza e pobreza são, em grande medida, realidades subjectivas e comparativas. Hoje muita gente lamenta-se de miséria, apesar de viver realmente muito melhor do que viviam os seus pais e avós. Isto não tira nada ao sofrimento, mas talvez contribua para amenizar a raiva e a depressão. Acima de tudo, fazendo-nos apreciar o que ainda temos, deveria aumentar a solidariedade, partilhando com os que realmente mais precisam.
16 DE JUNHO DE 2016
00:04
João César das Neves
Diário de Notícias
Nos tempos áureos do império, Portugal foi o povo mais rico do mundo. Depois, durante século e meio e até há umas décadas, vimo-nos relativamente carentes e atrasados face aos vizinhos. Isso magoava-nos mais por lembrar velhas glórias. Esse amargo complexo, que os intelectuais apelidaram de "tese da decadência", deixou há muito de ter validade, embora permaneça no folclore mediático e cânone intelectual.
O último meio século transformou Portugal. O país conseguiu um desenvolvimento importante desde os anos 1950, uma democratização sólida desde os anos 1970 e uma integração internacional desde os anos 1980. Hoje somos membros de pleno direito dos clubes globais mais selectos e conceituados, de que fazemos parte há muito tempo e com naturalidade. Os graves problemas que nos assolam desde o início do século não chegam, por enquanto, para perturbar essa condição.
Quando éramos pobres tínhamos a compreensível ilusão de que atingindo a prosperidade seria tudo fácil. Agora sabemos que um país rico tem problemas; tem crises, tem pobres. Aliás, as nossas dificuldades vêm, em certa medida, precisamente de sermos ricos. As doenças que temos são semelhantes às do Japão, Itália, Espanha; não parecidas com as do Congo, Brasil, Índia, como há cem anos. Doem na mesma, mas é bom conhecer a diferença.
Os indicadores económicos não deixam dúvidas acerca da nossa fortuna. O produto por pessoa coloca-nos em 162.º lugar nos 202 países com dados. Acima de 80% dos países, que compreendem 85% da população global, como podemos não ser dos ricos? Os indicadores sociais confirmam. Na mortalidade infantil temos a 10.ª taxa mais baixa dos 28 e a 6.ª mais baixa dos 15 da União Europeia. Considerando as infraestruturas, como todos ouvimos a cada momento, estamos acima da maioria dos nossos parceiros. Aliás, foi isso mesmo que gerou a dívida que nos trouxe à crise.
Este elemento constitui o paradoxo que caracteriza a situação: boa parte da doença que nos aflige só aconteceu porque já somos ricos. Há 20 anos nunca poderíamos ter chegado aqui. O nosso problema pode ser descrito como mero deslumbramento pela participação num clube de opulentos.
Compreenderíamos isso com clareza se ouvíssemos com atenção os nossos lamentos, exigências e reivindicações; exactamente aquilo que faz explodir a despesa pública e gera boa parte da presente dificuldade. Achamo-nos com direito a reduções de horário de trabalho e subidas de salários e pensões que seriam incompreensíveis aos nossos antepassados. O salário real médio, mesmo com crise, é hoje 32% superior ao que era em 1990, enquanto a pensão média mais do que duplicou no mesmo período em termos reais.
Até os sinais negativos, sem deixarem de ser dramáticos, manifestam essa abundância. Taxas de desemprego acima de 10% eram inauditas entre nós até 2009, precisamente porque antes nunca as teríamos conseguido suportar. Num país pobre, quem não trabalha não come. Hoje, entre crianças, desempregados, pensionistas e outros inactivos, temos 56% da população sem contribuir para o sustento nacional. Além disso, cada um dos empregados já trabalha anualmente 6% menos horas do que trabalhava em 1989, e ainda acha muito.
A constatação de que somos um país rico, tão omissa das nossas discussões, tem implicações importantes na compreensão da situação. Primeiro transforma o padrão da crise, tornando a recessão bastante distinta das anteriores. O que os anos passados nos ensinaram tem-se mostrado pouco relevante em condições muito diferentes.
Por outro lado, as nossas queixas, no meio de uma abundância que os antigos nem sonhavam, trazem lições importantes. Devíamos tomar consciência que riqueza e pobreza são, em grande medida, realidades subjectivas e comparativas. Hoje muita gente lamenta-se de miséria, apesar de viver realmente muito melhor do que viviam os seus pais e avós. Isto não tira nada ao sofrimento, mas talvez contribua para amenizar a raiva e a depressão. Acima de tudo, fazendo-nos apreciar o que ainda temos, deveria aumentar a solidariedade, partilhando com os que realmente mais precisam.
16 DE JUNHO DE 2016
00:04
João César das Neves
Diário de Notícias
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