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Estado solidário e sociedade civil

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Mensagem por Admin Qui Jun 30, 2016 10:57 am

A propósito dos tempos de tormenta que abalam o Velho Continente, importa não confundir a Europa com a UE: muito menos com os políticos e eurocratas que dominam a sua 'nomenklatura'.

O crescente mal-estar que atormenta a União Europeia (UE) deu em ‘Brexit’, abrindo caminho a um mar de aflições e incertezas. Mesmo assim não faltam políticos e comentadores a insistirem em “mais” Europa. Aconselhando-nos a aproveitar os escombros da saída do Reino Unido para construir uma UE mais forte e coesa: uma Europa mais solidária. Mas há outra interpretação possível do referendo: os povos não querem “mais” (este tipo de) Europa. Menos ainda esta forma inquinada de integração e de solidariedade.

Um conflito que, por isso, é também sobre o abuso do termo solidariedade. Visível, aliás, noutros continentes com propostas de passagem de um Estado subsidiário a um Estado solidário. O Chile – na linha da nossa geringonça – é só o último exemplo. Que tal explorar as contradições deste novo “avanço” civilizacional servido à esquerda (e até à direita) por um discurso ético de alargamento da cidadania a partir do papel solidário do Estado?

Poderíamos começar pelas dúvidas sobre os “custos” do cumprimento de mais este “avanço” forçado por uma classe política que costuma prometer pontes mesmo onde não há rios. Mas a prioridade vai para o agitar das contradições do Estado (dito) solidário. Não se trata de alargar o princípio da subsidiariedade, entendido como acção positiva, mas de entregar essa acção ao Estado solidário, acentuando assim os perigos de um futuro garantido pelo Estado.

Um sonho dos tempos modernos que hoje virou pesadelo sem fim. O que nos obriga a recordar a necessidade de não confundir o sentimento de solidariedade com a virtude da solidariedade. Lembrando que o primeiro conduz à postulação do Estado de bem-estar em que a solidariedade se organiza burocraticamente à custa do orçamento do Estado, dando azo a todo o tipo de abusos, fraudes e corrupções. Ao contrário da segunda que leva à generosa realização de actuações concretas de ajuda, material, moral, cultural, com sacrifício pessoal, de que está cheia a história da humanidade, sobretudo quando a solidariedade burocrática não impede a virtude da solidariedade.

Daí o risco inerente ao foco no papel solidário do Estado. Mais ainda quando se refere os pagadores de impostos como contribuintes, esquecendo-se que os tributos são obrigatórios e coactivos. Um modus operandi contrário à natureza voluntária da genuína solidariedade. Contradição que se agudiza à medida que se descobre que a solidariedade não só não se identifica com o Estado como aponta para algo mais profundo: a actuação livre e responsável das pessoas na diversidade das instituições que visam o bem comum.

Acresce que o carácter perverso desta identificação se torna mais flagrante quando se aborda o drama da solidão que prolifera nas nossas sociedades, caracterizadas pela fragmentação social e por um crescente isolamento das pessoas. Mal que se acentuou à medida que muitas instituições sociais – da família, igrejas e associações locais às misericórdias, fundações e mutualidades – se foram deixando cair na alçada do Estado: constituído como monopólio da obediência.

Um monopólio que autoriza políticos e burocratas a ver com maus olhos que pessoas comuns façam parte de outros grupos e, mais ainda, possuam outros vínculos e lealdades sociais que possam valorizar mais que os vínculos políticos. Temendo que a obediência ao Estado deixe de ser absoluta. É sempre bom lembrar, em especial a quem na Igreja abençoa tal obediência, que o Estado aspira a ser soberano, ou seja, autoridade última sobre tudo e todos.

A esta luz entendem-se melhor os receios do Estado em relação às tais instituições sociais, e até para com as autonomias municipais. Ou não fosse o Estado (de bem-estar) uma invenção criada para se substituir aos serviços que tradicionalmente eram prestados pelas famílias e pelas inúmeras instituições de proximidade e ajuda mútua: da infância à velhice, da educação e saúde à previdência social. Ainda assim dá que pensar o modo insolente como os defensores do Estado exclusivo, depois de terem fragmentado e minado todos os vínculos cooperativos que mantinha a sociedade unida, se queixam da fraqueza da sociedade civil e de que as redes de cooperação social se estão a extinguir. Omitindo que foi o Estado que as matou para as monopolizar.

Chegados aqui, importa descobrir que a inversão deste processo de perversão e corrupção da sociedade não pede mais estatismo, antes mais liberdade e responsabilidade. Pondo fim a um sistema político neoliberal que se afirmou erradicando todas as formas de interacção social – salvo a económica, deixada a um mercado muito regulado pelo Estado. O contrário de uma visão genuinamente liberal, assente numa sociedade civil vigorosa e integrada, mercê da livre associação de pessoas aptas a fomentar instituições privadas e cooperativas com propósitos que vão “além da oferta e da procura”.

Sem uma sociedade civil liberta do mercado político e da ingerência e tutela perversa e corruptora do Estado, torna-se impossível valorizar a criatividade de instituições de cooperação social e criar condições para o crescimento de formas de redistribuição natural, livre e voluntária. É da diversidade de associações privadas com fins sociais, das fundações às misericórdias, que nascem as verdadeiras formas espontâneas (e não forçadas) de solidariedade e realização humana – e com um mínimo de corrupção.

Daí a necessidade de não se confundir a solidariedade como sentimento com a solidariedade como virtude. O mesmo se poderia dizer, a propósito dos tempos de tormenta que abalam o Velho Continente, da obrigação de não se confundir a Europa com a UE: muito menos com os políticos e eurocratas que dominam a sua nomenklatura. Apostando antes numa real concorrência entre Estados de modo a que do modelo único de (des)integração forçada ressurja uma verdadeira ordem alargada de cooperação e civilização.

É tempo de perceber quanto os populismos de esquerda e de direita comungam da mesma vontade de utilizar o Estado como arma de arremesso de ganhadores contra perdedores. E de ver que a verdadeira solidariedade passa, antes de mais, pela defesa da compatibilidade entre a economia de mercado e a virtude da solidariedade. Daí a importância de denunciar os efeitos perversos do intervencionismo – a que Mises chamava destruicionismo – por parte de elites estatais que insistem em planear a vida dos povos sem considerar as suas preferências, apenas os seus interesses e os da máquina de poder que instrumentalizam a seu favor.

Não deixa de ser sintomático que políticos do nosso tempo, em nome da equivalência entre os direitos individuais e sociais, tenham minado uns e outros, e agora, depois de terem tornado o mundo inseguro e insustentável, se dediquem à transformação da política num imenso circo mediático. E que, mesmo assim, ainda estranhem que o povo em eleições se vire para palhaços mais genuínos.

 

   P. S. Com esta crónica – por razões que se prendem com o excesso de afazeres –suspendo a minha colaboração com o Económico. Fico imensamente agradecido por me terem acolhido nos últimos três anos depois de um honroso convite do então director António Costa. Admito poder regressar em Outubro se na altura me quiserem de volta.

00:05 h
José Manuel Moreira, Professor Universitário
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