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PCP: A luta continua!
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PCP: A luta continua!
A visão do PCP é obviamente tudo menos apropriada para elucidar os reais conflitos na nossa sociedade. É apenas um exercício militante de cegueira para ocultar o que é importante.
“A luta continua!”, ouvia-se, matraqueado, na televisão. Jerónimo de Sousa acabara de falar das virtudes criativas do “centralismo democrático” (uma expressão que hoje em dia só deve ser conhecida por um número muito restrito de portugueses) e da base teórica que constitui para o PC o marxismo-leninismo. Era o fim do discurso da festa do Avante!, e a multidão fervilhava de entusiasmo.
“A luta continua!”. A litania acompanhou, mais próxima ou mais longínqua, a maior parte da minha vida, como a de todos nós, e, de uma certa maneira, é a expressão emblemática do PCP. Afirmação de um presente que é rememoração do passado e promessa que o futuro prolongará inflexivelmente o que o passado legou ao presente. Símbolo poderoso de identidade, portanto, da identidade comunista. Uma identidade viril (a “luta”) e ininterrupta (“continua”), sem falhas ou suspeição de ambiguidades e compromissos que, sequer remotamente, possam pôr em causa a superioridade política e moral daquela particular comunidade. Uma imagem perfeita que desenha, num só gesto, o que define aquele grupo singular e o que o separa, sem concessões, da demasiado humana mutabilidade e oscilação dos outros.
Falar do PCP provoca-me sempre algum pudor. Não que sofra em qualquer grau da tendência vulgar para o fascínio pela identidade pretensamente absoluta e indivisa daquela comunidade que parece seduzir tantos dos nossos contemporâneos. O conhecimento da sua pactuação e entusiasmo com os mais desmesurados horrores totalitários, bem como a mais local memória do seu papel no PREC, chegam e sobram para evitar ternuras aberrantes e deslocadas. Claro que isso não impede o reconhecimento de várias coisas, nomeadamente o complexo elemento humano que ditou sacrifícios e heroísmos na resistência a Salazar, sacrifícios e heroísmos misturados, como se sabe, com furiosas injustiças e cruéis facciosismos. Mas este segundo elemento é, de direito e de facto, claramente separável do primeiro, e, politicamente, é o primeiro que importa, e aí o juízo não oferece lugar para grandes dúvidas. Não, o que leva a algum pudor quando se fala do PCP é o sentimento, e creio estar a usar as palavras com propriedade, de se estar a invadir a privacidade alheia. Aquilo apresenta tantas características de uma família fechada sobre si que é um pouco como, entrando no nosso prédio, nos enganarmos no andar e, por inadvertência, sermos obrigados a asssistir a uma intimidade com a qual nada temos a ver e em relação à qual só por coscuvilhice algum interesse poderia surgir.
Fora disto, e do significado presente da notória influência do PCP no actual Governo, com consequências que só podem ser péssimas, o que “A luta continua!” me lembrou foram outras coisas. Elas têm a ver com a linguagem e a maneira de pensar. Genericamente, com o modo como, para dizer aquela tal continuidade de que falei, a linguagem do PCP é caracterizada por um uso maciço de oposições, sem lugar para posições intermédias. Ora, para pensar o que quer que seja, tal como para a nossa orientação mais simples (em frente/atrás, acima/abaixo, esquerda/direita, etc.), é sem dúvida necessário opor. Mas pensar exige ir além disso, exige procurar estabelecer relações entre o que se opõe que não sejam de puro agonismo. Nada disso se encontra, tirando no plano estritamente táctico, no PCP. Para além disso, se a linguagem das oposições tem a ambição de dar a ver o carácter fluente da história, o seu dinamismo, o seu efeito prático é exactamente o inverso: cristalizar as oposições num plano mítico, com a ajuda de uma linguagem petrificada e, por definição, separada da realidade e com pouquíssimos pontos de contacto efectivo com esta.
Alguns exemplos. Paz e guerra, por exemplo. O PCP não cessa de se proclamar no campo da paz e em oposição ao campo da guerra. Não são precisas grandes subtilezas teóricas para se perceber que “paz” e “guerra” não têm aqui nenhum significado prático bem definível. São puros símbolos abstractos que visam unicamente traçar uma linha de divisão entre si e os outros, que se encontram naturalmente no campo da guerra. Ou então avanço e retrocesso. Aparentemente, trata-se de uma referência ao dinamismo das sociedades, um dinamismo que se encontraria sublinhado pela abundantíssima utilização de palavras como “luta”, “batalha”, “ofensiva”, “resistência”, etc. Mas o que sugere dinamismo reflecte o seu exacto contrário. São expressões míticas ritualmente utilizadas para oferecerem uma visão da realidade eminentemente estática, sem contacto com a fluência do real. E exactamente o mesmo se passa com as entidades que se encontram na tal luta. De um lado, o capitalismo, frequentemente associado ao fascismo, ao imperialismo e aos “grandes grupos financeiros”; do outro, o socialismo, ou, mais caseiramente, “Abril”, de que o PCP se considera legítimo e exclusivo proprietário (“o Partido de Abril”) e a “política alternativa, patriótica e de esquerda”. Tal visão das coisas é obviamente tudo menos apropriada para elucidar, por pouco que seja, os reais conflitos que se encontram nas sociedades, a nossa ou outras. Ela é antes um exercício militante de cegueira destinado a, com o auxílio de palavras propositadamente abstractas, ocultar tudo o que é verdadeiramente importante e apresenta problemas que têm de ser resolvidos. Os verdadeiros problemas ficam enterrados pela aplicação de um modelo mítico à realidade.
Não é, note-se, que não haja uma realidade que o PCP afeccione particularmente. Há-a, certamente. Mas não é uma realidade portuguesa. É a da defunta União Soviética, antes do seu colapso. Basta ver as declarações sobre as danosas consequências do seu triste fim e, particularmente, sobre a queda do muro de Berlim. Além, é claro, dos vários doces enlevos com a Rússia de Putin, substituto possível, nos nossos tempos, do antigo “Sol da Terra” (Cunhal) que entretanto deixou de brilhar.
Não me entreguei a estas breves considerações com a supimpa pretensão de dizer algo de novo. Tudo isto foi dito muito melhor e mais detalhadamente por um sem-número de pessoas. A única razão para o exercício é que, sob a superior direcção do nosso querido António Costa, o PC goza hoje, através dos seus sindicatos, de um indiscutível poder sobre alguns ministérios. E não é preciso ser um génio para perceber que a imposição de uma visão mítica da realidade, de um esquema das coisas abstracto e a-temporal, de uma concepção estática da sociedade disfarçada por uma fraseologia dinamista, só podem ter o pior dos efeitos sobre a nossa vida. Estão a tê-lo e vão tê-lo ainda mais. A luta continua, com efeito.
Paulo Tunhas
17:10
Observador
“A luta continua!”, ouvia-se, matraqueado, na televisão. Jerónimo de Sousa acabara de falar das virtudes criativas do “centralismo democrático” (uma expressão que hoje em dia só deve ser conhecida por um número muito restrito de portugueses) e da base teórica que constitui para o PC o marxismo-leninismo. Era o fim do discurso da festa do Avante!, e a multidão fervilhava de entusiasmo.
“A luta continua!”. A litania acompanhou, mais próxima ou mais longínqua, a maior parte da minha vida, como a de todos nós, e, de uma certa maneira, é a expressão emblemática do PCP. Afirmação de um presente que é rememoração do passado e promessa que o futuro prolongará inflexivelmente o que o passado legou ao presente. Símbolo poderoso de identidade, portanto, da identidade comunista. Uma identidade viril (a “luta”) e ininterrupta (“continua”), sem falhas ou suspeição de ambiguidades e compromissos que, sequer remotamente, possam pôr em causa a superioridade política e moral daquela particular comunidade. Uma imagem perfeita que desenha, num só gesto, o que define aquele grupo singular e o que o separa, sem concessões, da demasiado humana mutabilidade e oscilação dos outros.
Falar do PCP provoca-me sempre algum pudor. Não que sofra em qualquer grau da tendência vulgar para o fascínio pela identidade pretensamente absoluta e indivisa daquela comunidade que parece seduzir tantos dos nossos contemporâneos. O conhecimento da sua pactuação e entusiasmo com os mais desmesurados horrores totalitários, bem como a mais local memória do seu papel no PREC, chegam e sobram para evitar ternuras aberrantes e deslocadas. Claro que isso não impede o reconhecimento de várias coisas, nomeadamente o complexo elemento humano que ditou sacrifícios e heroísmos na resistência a Salazar, sacrifícios e heroísmos misturados, como se sabe, com furiosas injustiças e cruéis facciosismos. Mas este segundo elemento é, de direito e de facto, claramente separável do primeiro, e, politicamente, é o primeiro que importa, e aí o juízo não oferece lugar para grandes dúvidas. Não, o que leva a algum pudor quando se fala do PCP é o sentimento, e creio estar a usar as palavras com propriedade, de se estar a invadir a privacidade alheia. Aquilo apresenta tantas características de uma família fechada sobre si que é um pouco como, entrando no nosso prédio, nos enganarmos no andar e, por inadvertência, sermos obrigados a asssistir a uma intimidade com a qual nada temos a ver e em relação à qual só por coscuvilhice algum interesse poderia surgir.
Fora disto, e do significado presente da notória influência do PCP no actual Governo, com consequências que só podem ser péssimas, o que “A luta continua!” me lembrou foram outras coisas. Elas têm a ver com a linguagem e a maneira de pensar. Genericamente, com o modo como, para dizer aquela tal continuidade de que falei, a linguagem do PCP é caracterizada por um uso maciço de oposições, sem lugar para posições intermédias. Ora, para pensar o que quer que seja, tal como para a nossa orientação mais simples (em frente/atrás, acima/abaixo, esquerda/direita, etc.), é sem dúvida necessário opor. Mas pensar exige ir além disso, exige procurar estabelecer relações entre o que se opõe que não sejam de puro agonismo. Nada disso se encontra, tirando no plano estritamente táctico, no PCP. Para além disso, se a linguagem das oposições tem a ambição de dar a ver o carácter fluente da história, o seu dinamismo, o seu efeito prático é exactamente o inverso: cristalizar as oposições num plano mítico, com a ajuda de uma linguagem petrificada e, por definição, separada da realidade e com pouquíssimos pontos de contacto efectivo com esta.
Alguns exemplos. Paz e guerra, por exemplo. O PCP não cessa de se proclamar no campo da paz e em oposição ao campo da guerra. Não são precisas grandes subtilezas teóricas para se perceber que “paz” e “guerra” não têm aqui nenhum significado prático bem definível. São puros símbolos abstractos que visam unicamente traçar uma linha de divisão entre si e os outros, que se encontram naturalmente no campo da guerra. Ou então avanço e retrocesso. Aparentemente, trata-se de uma referência ao dinamismo das sociedades, um dinamismo que se encontraria sublinhado pela abundantíssima utilização de palavras como “luta”, “batalha”, “ofensiva”, “resistência”, etc. Mas o que sugere dinamismo reflecte o seu exacto contrário. São expressões míticas ritualmente utilizadas para oferecerem uma visão da realidade eminentemente estática, sem contacto com a fluência do real. E exactamente o mesmo se passa com as entidades que se encontram na tal luta. De um lado, o capitalismo, frequentemente associado ao fascismo, ao imperialismo e aos “grandes grupos financeiros”; do outro, o socialismo, ou, mais caseiramente, “Abril”, de que o PCP se considera legítimo e exclusivo proprietário (“o Partido de Abril”) e a “política alternativa, patriótica e de esquerda”. Tal visão das coisas é obviamente tudo menos apropriada para elucidar, por pouco que seja, os reais conflitos que se encontram nas sociedades, a nossa ou outras. Ela é antes um exercício militante de cegueira destinado a, com o auxílio de palavras propositadamente abstractas, ocultar tudo o que é verdadeiramente importante e apresenta problemas que têm de ser resolvidos. Os verdadeiros problemas ficam enterrados pela aplicação de um modelo mítico à realidade.
Não é, note-se, que não haja uma realidade que o PCP afeccione particularmente. Há-a, certamente. Mas não é uma realidade portuguesa. É a da defunta União Soviética, antes do seu colapso. Basta ver as declarações sobre as danosas consequências do seu triste fim e, particularmente, sobre a queda do muro de Berlim. Além, é claro, dos vários doces enlevos com a Rússia de Putin, substituto possível, nos nossos tempos, do antigo “Sol da Terra” (Cunhal) que entretanto deixou de brilhar.
Não me entreguei a estas breves considerações com a supimpa pretensão de dizer algo de novo. Tudo isto foi dito muito melhor e mais detalhadamente por um sem-número de pessoas. A única razão para o exercício é que, sob a superior direcção do nosso querido António Costa, o PC goza hoje, através dos seus sindicatos, de um indiscutível poder sobre alguns ministérios. E não é preciso ser um génio para perceber que a imposição de uma visão mítica da realidade, de um esquema das coisas abstracto e a-temporal, de uma concepção estática da sociedade disfarçada por uma fraseologia dinamista, só podem ter o pior dos efeitos sobre a nossa vida. Estão a tê-lo e vão tê-lo ainda mais. A luta continua, com efeito.
Paulo Tunhas
17:10
Observador
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