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Carta a um amigo que é ministro
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Carta a um amigo que é ministro
1 - Meu querido Mário, tirando dois fugazes "olá estás bom?" - poucos minutos, não mais de três, quatro, sei lá quantos!, só sei que foram poucos. Demasiado escassos para os 30 e tal anos juntos, três minutos de três décadas e cumplicidades. Tem sido pouco e sinto a falta. Pouco para a saudade, não para a amizade porque esta, quando autêntica e espontânea, resiste aos ponteiros do relógio e dispensa palavras para se sustentar.
Não te vejo nem te falo vai para um ano, se descontarmos esses dois breves momentos e mais uma outra conversa, essa ainda mais rápida, ao telefone, para me dizeres o que eu já adivinhava, que te seria impossível ires ao nosso encontro no dia do meu 50.º aniversário, porque estavas sem tempo (outra vez o tempo, esse muro intransponível!) entre um Ecofin e vai-se-lá--saber-mais-o-quê, porque ninguém sonha a vida infernal que um ministro das Finanças leva.
Penso ter a noção. Não por ti, embora o pressinta, mas por outros com quem lidei ao longo de, praticamente, toda a minha primeira encarnação profissional: Miguel Cadilhe, Miguel Beleza, Braga de Macedo, Eduardo Catroga, Sousa Franco, Pina Moura, Oliveira Martins, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Campos e Cunha, Teixeira dos Santos.
Lidei com todos, privei com alguns antes (quase todos) ou depois (raros) das suas passagens pelo Terreiro do Paço. Nem todos suportaram, ou sequer perdoaram, a dureza das críticas, não sublevaram a injustiça de que sentiram vítimas, provavelmente com razão em algumas delas.
Nunca consegui, portanto e enquanto jornalista, manter uma relação fácil com um único ministro das Finanças - como digo, só com os "ex" e com os que viriam a sê-lo. Pelo meio, alguns cortaram relações. Não tive, eu e eles, a capacidade de as restabelecer plenamente e em todos os casos. Nuns, lamento. Noutros, confesso que não perdi nada.
No teu caso, Mário, nem uma coisa nem outra. Simplesmente ficaste ministro e desapareceste. Talvez pela mesma razão, por não estarmos dispostos a pagar um preço tão elevado pela minha independência e pela tua integridade. Afastámo-nos, assim, sem mais nem menos, sem aviso prévio ou qualquer combinação. Estas coisas não se combinam. Acontecem naturalmente.
E pronto! À exceção daqueles dois momentos fortuitos, em que da meia dúzia de frases trocadas só faltou "vê lá se te alimentas", será esta a primeira vez, desde que és ministro, que dedico um par de horas para te dizer algumas coisas. Faço-o por me preocupar contigo. Mas também pela preocupação geral com a nação.
2 - Escrevo-te no dia em que, tudo ao mesmo tempo, soubemos: que a dívida pública voltou a crescer em agosto; que o governador Costa deu novos sinais de inquietação sobre a banca e que um comissário europeu falou na hipótese de segundo resgate a Portugal.
Pois não era sobre isto que te queria falar. Ao entrar em funções, a dívida portuguesa, mesmo em austeridade, já estava transformada num incêndio descontrolado. Também sabias que o regulador estava desregulado. Admito a surpresa quando viste Bruxelas entregue a pirómanos.
Não tens culpa, eu sei. Nós também não. Ninguém tem, aliás. Se o Estado nunca equilibrou as suas contas em mais de 40 anos de democracia, então a culpa é de todos. Com os humanos neutralizados, só um milagre faria a nossa dívida pública voltar a descer.
Mas tu não acreditas em crendices. E ao milagre chamaste "crescimento económico". Que até agora nada, não funcionou a tal fórmula da procura interna estimulada. Azar? Excesso de zelo? Ou a geringonça não era uma variável do modelo?
Se queres que te diga, de tudo um pouco: a conjuntura externa rebentou com a dinâmica exportadora (e não fosse o turismo, a situação ainda estava pior); a revolução-chique em curso rebentou com a credibilidade da política económica; e, tudo isto, o azar, as bloquistas czares, tornou indefinível a própria política económica.
Para onde caminha a economia portuguesa? - perguntava, em livro célebre, o professor de Economia do nosso primeiro ano de faculdade, Francisco Pereira de Moura. Não espero que me ligues, não espero que me respondas, espero apenas pelo Orçamento do Estado para o próximo ano - que vamos conhecer nos próximos dias.
3 - No primeiro ano deste "governo sui generis", a política matou a economia. No segundo ano, a oposição ausente espera que a sua vez chegue quando a economia matar o governo. É uma lógica possível, mas não é a tua lógica. Não pertences a este mundo, não queiras ser como eles.
Nem sequer caminhas como os ministros das Finanças caminham. És desengonçado e sorris - mais desengonçado do que a própria geringonça, nesse teu cargo em que não é suposto sorrir. Retira credibilidade, dizem os senhores crescidos. São aqueles que conviveram com esta dívida ingerível. São aqueles que deixaram os "bancos a precisar criticamente" de mais capital. Vários bancos, de capital que não temos.
Onde estás agora, reconheço a tua lealdade e revejo-te nos princípios. Foste sempre assim, o espírito de missão, o orgulho próprio, o otimismo de quem acredita que tudo se compõe. Falta o essencial: a autenticidade.
Podes assinar coisas com as quais não concordas, não podes é transformar-te naquilo que não és. Até entendo que desprezes a cartilha que conduziu o país ao precipício. Mas temo pelo teu próximo Orçamento, que seja o avante camarada do passo em frente.
Se o OE que nos vais apresentar dentro de semana e meia for aquilo que parece, se a geringonça for a sua maior e principal razão de ser, está o país esclarecido sobre a ordem das prioridades. Ficará na história como o OE do Centeno. Mas não será do Mário que eu conheço.
04 DE OUTUBRO DE 2016
00:00
Sérgio Figueiredo
Diário de Notícias
Não te vejo nem te falo vai para um ano, se descontarmos esses dois breves momentos e mais uma outra conversa, essa ainda mais rápida, ao telefone, para me dizeres o que eu já adivinhava, que te seria impossível ires ao nosso encontro no dia do meu 50.º aniversário, porque estavas sem tempo (outra vez o tempo, esse muro intransponível!) entre um Ecofin e vai-se-lá--saber-mais-o-quê, porque ninguém sonha a vida infernal que um ministro das Finanças leva.
Penso ter a noção. Não por ti, embora o pressinta, mas por outros com quem lidei ao longo de, praticamente, toda a minha primeira encarnação profissional: Miguel Cadilhe, Miguel Beleza, Braga de Macedo, Eduardo Catroga, Sousa Franco, Pina Moura, Oliveira Martins, Manuela Ferreira Leite, Bagão Félix, Campos e Cunha, Teixeira dos Santos.
Lidei com todos, privei com alguns antes (quase todos) ou depois (raros) das suas passagens pelo Terreiro do Paço. Nem todos suportaram, ou sequer perdoaram, a dureza das críticas, não sublevaram a injustiça de que sentiram vítimas, provavelmente com razão em algumas delas.
Nunca consegui, portanto e enquanto jornalista, manter uma relação fácil com um único ministro das Finanças - como digo, só com os "ex" e com os que viriam a sê-lo. Pelo meio, alguns cortaram relações. Não tive, eu e eles, a capacidade de as restabelecer plenamente e em todos os casos. Nuns, lamento. Noutros, confesso que não perdi nada.
No teu caso, Mário, nem uma coisa nem outra. Simplesmente ficaste ministro e desapareceste. Talvez pela mesma razão, por não estarmos dispostos a pagar um preço tão elevado pela minha independência e pela tua integridade. Afastámo-nos, assim, sem mais nem menos, sem aviso prévio ou qualquer combinação. Estas coisas não se combinam. Acontecem naturalmente.
E pronto! À exceção daqueles dois momentos fortuitos, em que da meia dúzia de frases trocadas só faltou "vê lá se te alimentas", será esta a primeira vez, desde que és ministro, que dedico um par de horas para te dizer algumas coisas. Faço-o por me preocupar contigo. Mas também pela preocupação geral com a nação.
2 - Escrevo-te no dia em que, tudo ao mesmo tempo, soubemos: que a dívida pública voltou a crescer em agosto; que o governador Costa deu novos sinais de inquietação sobre a banca e que um comissário europeu falou na hipótese de segundo resgate a Portugal.
Pois não era sobre isto que te queria falar. Ao entrar em funções, a dívida portuguesa, mesmo em austeridade, já estava transformada num incêndio descontrolado. Também sabias que o regulador estava desregulado. Admito a surpresa quando viste Bruxelas entregue a pirómanos.
Não tens culpa, eu sei. Nós também não. Ninguém tem, aliás. Se o Estado nunca equilibrou as suas contas em mais de 40 anos de democracia, então a culpa é de todos. Com os humanos neutralizados, só um milagre faria a nossa dívida pública voltar a descer.
Mas tu não acreditas em crendices. E ao milagre chamaste "crescimento económico". Que até agora nada, não funcionou a tal fórmula da procura interna estimulada. Azar? Excesso de zelo? Ou a geringonça não era uma variável do modelo?
Se queres que te diga, de tudo um pouco: a conjuntura externa rebentou com a dinâmica exportadora (e não fosse o turismo, a situação ainda estava pior); a revolução-chique em curso rebentou com a credibilidade da política económica; e, tudo isto, o azar, as bloquistas czares, tornou indefinível a própria política económica.
Para onde caminha a economia portuguesa? - perguntava, em livro célebre, o professor de Economia do nosso primeiro ano de faculdade, Francisco Pereira de Moura. Não espero que me ligues, não espero que me respondas, espero apenas pelo Orçamento do Estado para o próximo ano - que vamos conhecer nos próximos dias.
3 - No primeiro ano deste "governo sui generis", a política matou a economia. No segundo ano, a oposição ausente espera que a sua vez chegue quando a economia matar o governo. É uma lógica possível, mas não é a tua lógica. Não pertences a este mundo, não queiras ser como eles.
Nem sequer caminhas como os ministros das Finanças caminham. És desengonçado e sorris - mais desengonçado do que a própria geringonça, nesse teu cargo em que não é suposto sorrir. Retira credibilidade, dizem os senhores crescidos. São aqueles que conviveram com esta dívida ingerível. São aqueles que deixaram os "bancos a precisar criticamente" de mais capital. Vários bancos, de capital que não temos.
Onde estás agora, reconheço a tua lealdade e revejo-te nos princípios. Foste sempre assim, o espírito de missão, o orgulho próprio, o otimismo de quem acredita que tudo se compõe. Falta o essencial: a autenticidade.
Podes assinar coisas com as quais não concordas, não podes é transformar-te naquilo que não és. Até entendo que desprezes a cartilha que conduziu o país ao precipício. Mas temo pelo teu próximo Orçamento, que seja o avante camarada do passo em frente.
Se o OE que nos vais apresentar dentro de semana e meia for aquilo que parece, se a geringonça for a sua maior e principal razão de ser, está o país esclarecido sobre a ordem das prioridades. Ficará na história como o OE do Centeno. Mas não será do Mário que eu conheço.
04 DE OUTUBRO DE 2016
00:00
Sérgio Figueiredo
Diário de Notícias
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