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EUTANÁSIA: Alguns abutres hão-de pairar
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EUTANÁSIA: Alguns abutres hão-de pairar
Enquanto não assegurarmos cuidados paliativos para todos, não podemos discutir a boa morte para alguns. Se começarmos pelo fim, teremos a certeza de que haverá abutres a pairar sobre as nossas cabeças
Em breve retomaremos o debate público sobre a possibilidade de legalizar a eutanásia e por isso vale a pena trazer à conversa tudo aquilo que precisamos de ver argumentado e analisado antes e durante os debates. Não é possível avançar nesta matéria sem primeiro discutir as primeiras coisas. First things, first!
Todos os que nos envolvemos nesta controvérsia sabemos que é tanto aquilo que nos une como aquilo que nos separa. De um lado, os que estão contra; do outro os que estão a favor, mas no meio há tempo e espaço para falarmos verdade uns com os outros. E para termos uma noção exacta daquilo que está em jogo.
Une-nos, desde já, a compreensão do sofrimento e a compaixão pelos que sofrem. Também estamos ligados pela certeza de que a dor crónica, a agonia prolongada, o tormento desmedido não são leves nem fáceis. Muito menos desejáveis.
Acho que à esquerda e à direita, ao centro ou nos extremos, todos nos encontramos nesta solidariedade activa, nesta comunhão expressiva com os que gritam por socorro e pedem para morrer. Ninguém, absolutamente ninguém pode condenar ou julgar quem pede a morte por não conseguir suportar a vida. Nisso acho que estamos todos do mesmo lado. Contra ou a favor da legalização da eutanásia, não é possível ignorar estes gritos. Ou fingir que não ficam a fazer eco em nós.
Já escrevi e volto a escrever: vivi esta realidade à cabeceira de doentes que entraram no hospital a pedir, a gritar por eutanásia. Mesmo não sendo médica nem profissional de saúde, passei 3 anos à cabeceira de doentes crónicos, incuráveis e terminais como voluntária, numa unidade de cuidados paliativos. Vi muita coisa e também vi acontecer verdadeiros prodígios. Fiquei com um respeito profundo e elevado por todos aqueles que pedem para morrer, mas também por todos aqueles que, do outro lado, se entregam e dão o melhor de si para resgatar o sentido de vida aos doentes desistentes.
Não falo de cor, nem faço ficção. Estar à cabeceira de quem sofre não é uma fábula nem é propriamente uma experiência leve ou cor de rosa. Mas também não é tudo negro. Compreendo que uma pessoa em doloroso padecimento peça para morrer, mas não compreendo que o melhor que temos para oferecer a essa mesma pessoa seja matá-la. Mais, se eu própria passar por esse mesmo desespero, espero e conto que me dêem segundas e terceiras oportunidades. Posso vir a desesperar ao ponto de pedir para morrer, porque sou humana e trago tudo em mim, mas não quero ouvir do outro lado um sim imediato. Uma concordância fácil. Um assentimento que me diz que sim, que já estou a mais. Que perversa e desumanamente vem conferir a certeza de estar a ser um peso demasiado pesado. Não quero isso e sinceramente acho que ninguém quer. Nem mesmo os que pedem a eutanásia.
Não pretendo alimentar polémicas, nem reforçar braços de ferro. Quem me conhece sabe que não é esse o meu ponto em questões tão complexas e sensíveis como esta, e ainda que haja sempre quem prefira ler em entrelinhas imaginárias o que não está escrito nestas linhas, prefiro manter-me fiel à verdade que me move. E esta verdade passa pelo que vi e vivi. Só.
Passa por ter estado horas a fio no quarto de doentes desesperados, revoltados com a sua condição, que pacificaram e deixaram de pedir para morrer quando perceberam que podiam voltar a viver. A viver sem dor, sem desespero, com sentido e, por incrível que pareça, até com vontade de viajar e percorrer caminhos nunca antes percorridos, mas muito sonhados. Não posso dizer nomes, mas há centenas de pessoas que os sabem de cor como eu. Falo dos profissionais que estiveram envolvidos nestas situações, falo de médicos paliativistas, falo de enfermeiros e auxiliares, mas também das famílias de cada um destes doentes que passaram do grito pela morte assistida, às palavras de gratidão por não terem encontrado no caminho ninguém apostado em deixá-los morrer.
Todos sabemos que o grito pela morte acontece sempre num cúmulo de tormentos e em picos de desespero, mas quando a morte não se dá nesses mesmos picos, a vida volta a acontecer. E é neste ponto que devíamos partir para a discussão.
As perguntas que temos que nos fazer e têm necessariamente que ser conjugadas na primeira pessoa (as questões de vida e de morte não são uma abstracção que se aplica aos outros, mas sobretudo a nós mesmos e aos nossos!) passam por saber se morrer é a primeira e única opção. Será? Porque não começarmos pela experiência de aliviar os sofrimentos e minimizarmos as dores? Porque não avançarmos primeiro com uma resposta paliativa, terapêutica e resgatadora, antes de dizer a quem pede a eutanásia que sim, senhor, vamos a isso!
E é neste ponto que se torna urgente abrir outro tema, para mim igualmente aflitivo e bastante sinistro: o negócio da morte. O comércio que envolve os que querem morrer, os que estão dispostos a matar e os cuidadores e famílias que também vêm vantagem em descartar vidas que se tornam pesadas, insuportáveis ou aparentemente sem sentido.
A possibilidade de legalizar a eutanásia abre portas a uma casta de profissionais que se regem por números, que estão obrigados a cumprir business plan afinados, que fazem campanhas de marketing e publicidade, que precisam de expandir o negócio e, pasme-se, de fidelizar clientes. Ou seja, de viver do passa-palavra para que mais pessoas optem pela sua clínica, pela sua marca, pelo conjunto de vantagens que o seu pacote de morte assistida, supostamente digna e compassiva, oferece. Porque há concorrência e o mercado é uma selva.
Nada neste tema me cheira bem. Nem as agências, nem os agenciadores. Muito menos as batas de médicos que confundem por parecerem de profissionais que estudaram para salvar vidas e até curar doenças, mas neste contexto pertencem a uma gente que não quer saber nada da minha vida, mas apenas acelerar a minha morte. Sabemos ainda por cima qual o custo de cada transacção e isso ainda agrava mais toda e qualquer pendência, tornando este negócio muito sombrio e… incrivelmente elitista. Morre supostamente bem, quem consegue pagar bem. Os outros, que também sofrem e gritam, mas não têm dinheiro nem conhecimentos, ficarão para depois. Isolados na sua dor, porque ninguém os ouve nem atende pela simples razão de que ninguém cuidou de tratar primeiro das primeiras coisas, oferecendo-se para lutar pela sua vida. Enquanto não assegurarmos cuidados paliativos para todos, não podemos discutir a boa morte para alguns. Se começarmos pelo fim, podemos ter a certeza de que alguns abutres hão-de pairar sobre as nossas cabeças.
Laurinda Alves
4/10/2016, 0:09
Observador
Em breve retomaremos o debate público sobre a possibilidade de legalizar a eutanásia e por isso vale a pena trazer à conversa tudo aquilo que precisamos de ver argumentado e analisado antes e durante os debates. Não é possível avançar nesta matéria sem primeiro discutir as primeiras coisas. First things, first!
Todos os que nos envolvemos nesta controvérsia sabemos que é tanto aquilo que nos une como aquilo que nos separa. De um lado, os que estão contra; do outro os que estão a favor, mas no meio há tempo e espaço para falarmos verdade uns com os outros. E para termos uma noção exacta daquilo que está em jogo.
Une-nos, desde já, a compreensão do sofrimento e a compaixão pelos que sofrem. Também estamos ligados pela certeza de que a dor crónica, a agonia prolongada, o tormento desmedido não são leves nem fáceis. Muito menos desejáveis.
Acho que à esquerda e à direita, ao centro ou nos extremos, todos nos encontramos nesta solidariedade activa, nesta comunhão expressiva com os que gritam por socorro e pedem para morrer. Ninguém, absolutamente ninguém pode condenar ou julgar quem pede a morte por não conseguir suportar a vida. Nisso acho que estamos todos do mesmo lado. Contra ou a favor da legalização da eutanásia, não é possível ignorar estes gritos. Ou fingir que não ficam a fazer eco em nós.
Já escrevi e volto a escrever: vivi esta realidade à cabeceira de doentes que entraram no hospital a pedir, a gritar por eutanásia. Mesmo não sendo médica nem profissional de saúde, passei 3 anos à cabeceira de doentes crónicos, incuráveis e terminais como voluntária, numa unidade de cuidados paliativos. Vi muita coisa e também vi acontecer verdadeiros prodígios. Fiquei com um respeito profundo e elevado por todos aqueles que pedem para morrer, mas também por todos aqueles que, do outro lado, se entregam e dão o melhor de si para resgatar o sentido de vida aos doentes desistentes.
Não falo de cor, nem faço ficção. Estar à cabeceira de quem sofre não é uma fábula nem é propriamente uma experiência leve ou cor de rosa. Mas também não é tudo negro. Compreendo que uma pessoa em doloroso padecimento peça para morrer, mas não compreendo que o melhor que temos para oferecer a essa mesma pessoa seja matá-la. Mais, se eu própria passar por esse mesmo desespero, espero e conto que me dêem segundas e terceiras oportunidades. Posso vir a desesperar ao ponto de pedir para morrer, porque sou humana e trago tudo em mim, mas não quero ouvir do outro lado um sim imediato. Uma concordância fácil. Um assentimento que me diz que sim, que já estou a mais. Que perversa e desumanamente vem conferir a certeza de estar a ser um peso demasiado pesado. Não quero isso e sinceramente acho que ninguém quer. Nem mesmo os que pedem a eutanásia.
Não pretendo alimentar polémicas, nem reforçar braços de ferro. Quem me conhece sabe que não é esse o meu ponto em questões tão complexas e sensíveis como esta, e ainda que haja sempre quem prefira ler em entrelinhas imaginárias o que não está escrito nestas linhas, prefiro manter-me fiel à verdade que me move. E esta verdade passa pelo que vi e vivi. Só.
Passa por ter estado horas a fio no quarto de doentes desesperados, revoltados com a sua condição, que pacificaram e deixaram de pedir para morrer quando perceberam que podiam voltar a viver. A viver sem dor, sem desespero, com sentido e, por incrível que pareça, até com vontade de viajar e percorrer caminhos nunca antes percorridos, mas muito sonhados. Não posso dizer nomes, mas há centenas de pessoas que os sabem de cor como eu. Falo dos profissionais que estiveram envolvidos nestas situações, falo de médicos paliativistas, falo de enfermeiros e auxiliares, mas também das famílias de cada um destes doentes que passaram do grito pela morte assistida, às palavras de gratidão por não terem encontrado no caminho ninguém apostado em deixá-los morrer.
Todos sabemos que o grito pela morte acontece sempre num cúmulo de tormentos e em picos de desespero, mas quando a morte não se dá nesses mesmos picos, a vida volta a acontecer. E é neste ponto que devíamos partir para a discussão.
As perguntas que temos que nos fazer e têm necessariamente que ser conjugadas na primeira pessoa (as questões de vida e de morte não são uma abstracção que se aplica aos outros, mas sobretudo a nós mesmos e aos nossos!) passam por saber se morrer é a primeira e única opção. Será? Porque não começarmos pela experiência de aliviar os sofrimentos e minimizarmos as dores? Porque não avançarmos primeiro com uma resposta paliativa, terapêutica e resgatadora, antes de dizer a quem pede a eutanásia que sim, senhor, vamos a isso!
E é neste ponto que se torna urgente abrir outro tema, para mim igualmente aflitivo e bastante sinistro: o negócio da morte. O comércio que envolve os que querem morrer, os que estão dispostos a matar e os cuidadores e famílias que também vêm vantagem em descartar vidas que se tornam pesadas, insuportáveis ou aparentemente sem sentido.
A possibilidade de legalizar a eutanásia abre portas a uma casta de profissionais que se regem por números, que estão obrigados a cumprir business plan afinados, que fazem campanhas de marketing e publicidade, que precisam de expandir o negócio e, pasme-se, de fidelizar clientes. Ou seja, de viver do passa-palavra para que mais pessoas optem pela sua clínica, pela sua marca, pelo conjunto de vantagens que o seu pacote de morte assistida, supostamente digna e compassiva, oferece. Porque há concorrência e o mercado é uma selva.
Nada neste tema me cheira bem. Nem as agências, nem os agenciadores. Muito menos as batas de médicos que confundem por parecerem de profissionais que estudaram para salvar vidas e até curar doenças, mas neste contexto pertencem a uma gente que não quer saber nada da minha vida, mas apenas acelerar a minha morte. Sabemos ainda por cima qual o custo de cada transacção e isso ainda agrava mais toda e qualquer pendência, tornando este negócio muito sombrio e… incrivelmente elitista. Morre supostamente bem, quem consegue pagar bem. Os outros, que também sofrem e gritam, mas não têm dinheiro nem conhecimentos, ficarão para depois. Isolados na sua dor, porque ninguém os ouve nem atende pela simples razão de que ninguém cuidou de tratar primeiro das primeiras coisas, oferecendo-se para lutar pela sua vida. Enquanto não assegurarmos cuidados paliativos para todos, não podemos discutir a boa morte para alguns. Se começarmos pelo fim, podemos ter a certeza de que alguns abutres hão-de pairar sobre as nossas cabeças.
Laurinda Alves
4/10/2016, 0:09
Observador
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