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160 anos na linha
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160 anos na linha
RUI OCHÔA
A aventura do comboio em Portugal começou em 1856. A crise ambiental pode dar-lhe nova vida nos próximos anos. Só precisa de sobreviver até lá...
Com 30 anos de atraso sobre o Reino Unido o comboio chegou a Portugal a 28 de outubro de 1856, faz agora 160 anos. Chegou mas não foi muito longe, porque a via só estava construída entre Lisboa e Carregado e à locomotiva, comprada em segunda mão aos britânicos, faltou-lhe a força na viagem de regresso, pelo que foi largando carruagens com passageiros ilustres, lezíria fora. Nada melhor que as memórias da marquesa de Rio Maior para recordar esta cena.
“A máquina, escusado será dizer das mais primitivas (parecia um enorme garrafão), não tinha força para puxar todas as carruagens que lhe atrelaram; e fora-as largando pelo caminho. Algumas de convidados nos Olivais. O wagon do cardeal patriarca e do cabido ficou em Sacavém; mais um, recheado de dignitários, ficou ao desamparo na Póvoa. (...) Esses desprotegidos da sorte, semeados pela linha ao acaso das debilidades da tração acelerada, só chegaram alta noite a Lisboa, depois de ousadíssimas aventuras que encheram durante meses os soalheiros oficiais. Até andou gente com archotes, pela linha, em procura dos náufragos do progresso.”
Em bom rigor, a história começara em 1844, com a constituição da Companhia das Obras Públicas de Portugal, mas as revoluções da Maria da Fonte, da Patuleia e de Setembro não ajudaram. Só com a Regeneração e a subida de Saldanha e Fontes Pereira de Melo ao poder as coisas mudaram. No entanto, o padrão ficou desde logo traçado: formação e falência de sucessivas companhias privadas, entrada do Estado como salvador da situação, contração de empréstimos no estrangeiro com a consequente acumulação de encargos. Já lá iremos.
Durante séculos, a topografia acidentada e a falta de vias de comunicação tinha-nos protegido das hordas castelhanas e napoleónicas. Agora era uma evidência solar que só quebrando estes isolamentos ancestrais se poderia desenvolver o país. Em 1798, a primeira mala-posta demorava 40 horas de Lisboa a Coimbra. Em 1836, também de diligência, eram precisas 36 horas para ir de Lisboa a Badajoz e os viajantes eram aconselhados a não transportar valores, por causa dos assaltos. A melhor ligação entre Lisboa e Porto fazia-se de barco, mas o risco dos naufrágios era grande. Poucas coisas terão impressionado tanto a imaginação das pessoas da época como o naufrágio do vapor “Porto” na barra do Douro a 29 de março de 1852, em dia de temporal, perdendo-se o navio e os 63 passageiros e tripulantes.
Quem zombava dos salteadores de estrada era Almeida Garrett em “Viagens na Minha Terra”, ao descrever como, uma vez desembarcados do vapor vindo de Lisboa na Vala Real, a montante do Carregado, os viajantes embarcavam na diligência a caminho de Santarém, atravessando o tenebroso Pinhal da Azambuja, que, afinal, não era tão assustador como isso. O que Garrett abominava eram “os comboios dos barões”, onde jurara que nunca viajaria.
Sucederam-se cenas de especulação bolsista, obras abandonadas a meio e concessões passadas de mão em mão entre companhias de vida tão efémera como borboletas. Como hoje se diria, não havia controlo de custos nem planeamento e os traçados eram ao deus-dará. Tanto havia linhas construídas em bitola europeia (1,43 m) como ibérica ou, melhor dizendo, espanhola (1,67 m), esta um atavismo que ainda hoje nos sai caro.
Até chegou a funcionar um efémero monocarril entre Lisboa e Torres Vedras, de patente do engenheiro francês Larmanjat. O ponto fraco desta tecnologia que poupava carril e largura de via era que os dois lados da carruagem assentavam em rodados de madeira que, além de darem uma sova aos passageiros, levantavam uma poeirada infernal...
Depressa se torna óbvio que, para construir depressa e a baixo custo, limitando o recurso a viadutos, túneis e aterros, só havia uma possibilidade: aproveitar os vales dos principais rios e seus afluentes. Daqui resultava que as distâncias totais tendiam a crescer e que as linhas nem sempre passavam onde o interesse económico e demográfico aconselharia.
QUEM PAGA É O ESTADO
A verdade é que, 20 anos depois da aventurosa viagem Lisboa-Carregado, a espinha dorsal do sistema ferroviário português estava traçada. O comboio tinha começado por parecer o negócio do século, mas nem os custos de construção eram os esperados nem as previsões de tráfego de passageiros e de mercadorias eram realistas. Daí que os capitalistas nacionais se tivessem desinteressado de boa parte dos traçados que se pretendia construir. Acabou por ter que ser o Estado a arregaçar as mangas e a arcar com a construção de três obras vistas como fundamentais para o desenvolvimento regional: no Alentejo, as Linhas do Sul e do Sueste (atente-se na inscrição ainda hoje gravada no frontão da fachada da estação de Alcácer do Sal: Caminhos de Ferro do Estado); a Linha do Minho entre Porto e Valença (com um ramal de Nine para Braga); e a Linha do Douro, um verdadeiro atestado à competência da engenharia da época, furando granitos e xistos até à Régua, ao Pinhão e a Barca d’Alva, muitas vezes à flor das águas de um Douro então ainda revolto e não domado pelas barragens.
Já em redor do Porto a situação era diferente, havendo, aí sim, verdadeira iniciativa privada com companhias capazes de construir e explorar rede ferroviária, de fazer a manutenção do material circulante e até de o construir.
Trabalhando em via estreita (0,9 m), a Companhia do Caminho de Ferro do Porto à Póvoa levava o comboio da Boavista a Vila do Conde e à Póvoa de Varzim, chegando mais tarde a Famalicão (1881). Como se sabe, em 2002, o Metro do Porto herdou o essencial deste traçado, tendo a linha até Famalicão sido transformada em ecopista.
INFOGRAFIA JAIME FIGUEIREDO
Já a Companhia do Caminho de Ferro de Guimarães levava o comboio de Lousado à cidade-berço em 1884 (e mais tarde a Fafe), neste caso em via métrica. Esta falta de normalização de bitolas entre companhias geraria um pesadelo logístico só resolvido depois da I Guerra Mundial.
Sempre com os olhos em Espanha, vista como a antecâmara da Europa, multiplicam-se as ligações internacionais: Elvas (1863), Marvão (1880), Vilar Formoso (1882), Valença (1866) e Barca d’Alva (1887). Nem todas tinham igual interesse estratégico e económico. Após a chegada da Linha da Beira Alta a Vilar Formoso e à interligação com Espanha, um grupo de empresários e banqueiros do Porto movimentou-se para construir uma saída direta para Espanha, sob pena de “a erva começar a crescer nas ruas da Cidade Invicta”. Saudável motivação regionalista que, a fazer fé nas gazetas da época, era reforçada pela circunstância de os cabarés de Salamanca, muito frequentados por alguma elite portuense, terem passado a ficar substancialmente mais próximos da estação de Campanhã...
Como há sempre um outro lado das coisas, esta abertura de Portugal ao mundo tinha contrapartidas. Ouçamos Eça de Queirós, em “Uma Campanha Alegre”: “A companhia dos caminhos de ferro, com intenções amáveis e civilizadoras, coloca-nos em embaraços terríveis. Digamo-lo rudemente: nós não estamos em estado de receber visitas! (...) Se por acaso a companhia dos caminhos de ferro, para fingir que tem passageiros e movimento, precisa impreterivelmente fazer passar a fronteira a alguns viajantes curiosos — então ao menos que só dê lugar nos seus velhos vagões àqueles de quem nós não tenhamos vergonha e com cujas civilizações possamos competir: cafres, patagónios, lapónios, abexins, etiópios, tártaros, e hotentotes!”
Mesmo com avanços e recuos, crises financeiras, companhias privadas e estatais com lógicas contraditórias, no início do século XX o comboio chegava a todas as cidades portuguesas. Se rompeu isolamentos seculares, também facilitou o êxodo rural. Facilitou as exportações, mas escancarou as portas das importações. E boa parte da bancarrota ocorrida no final da monarquia resultou da implosão das finanças públicas sob o peso dos encargos contraídos para a construção e exploração da ferrovia.
Redordar. Memória da tração a vapor e automotora na Linha do Tua, sacrificada em nome de uma barragem supérflua
Tal como o telégrafo, o comboio chegou literalmente aos quatro cantos de Portugal, eliminando isolamentos milenares. Passava a ser possível ir praticamente num dia de Bragança a Lisboa, de Santarém ao Alvito, de Vila Real de Santo António a Chaves. Em carruagens de madeira com suspensão sofrível, com fagulhas a entrar pelas janelas e paragens frequentes para meter água na locomotiva.
Era perfeito e 100% cómodo? Longe disso. Novamente a pena aguçada do grande Eça: “Parece-nos pois que alguns conselhos à Companhia [dos Caminhos de Ferro] não podem por ela deixar de ser recebidos — não diremos de braços abertos mas de rails abertos. Assim, por exemplo, seria de todo o ponto dramático e excitante espalhar pela estrada destacamentos de bandidos que espingardeassem o comboio. Outrossim, meter em cada carruagem um lobo esfomeado, parece-nos um meio eficaz de impedir que o viajante tenha ocasião de se enfastiar. Enfim, como meio de produzir a mais aguda impressão, devia ter a companhia em cada estação empregados, que, ao parar do comboio, se aproximassem do passageiro e delicadamente, com todo o respeito — lhe cravassem uma navalha na ilharga. E a viagem ficaria deste modo marcada com indeléveis encantos e cicatrizes!”
Incómodos e atrasos à parte, que dizer da paisagem vista da janela do comboio? Como, por razões de engenharia, se tinham privilegiado os vales, era um deslumbramento de vistas sobre os meandros do Tejo no Castelo de Almourol ou sobre os socalcos vinhateiros do Douro. Para não falar no extraordinário serpentear pela margem esquerda do Tua entre Foz Tua e Abreiro ou ao longo das encostas do Corgo, entre Régua e Vila Real.
Por alguma coisa, quase até ao 25 de Abril a geografia da escola primária usava como matriz do território as linhas férreas e ramais que as crianças não só eram obrigadas a saber de cor como a apontar e explicar no mapa.
Com o desenvolvimento da ferrovia nascia uma escola de engenharia civil, mais tarde enriquecida pela superestrela da construção metálica, o grande Eiffel, que nos deixou entre outras a Ponte Maria Pia no Porto e a ponte rodoferroviára de Viana do Castelo.
RUI DUARTE SILVA
Fazendo um balanço do impacto regional desta primeira fase da ferrovia em Portugal entre 1856 e 1890, é forçoso reconhecer que a cobertura do território nacional era tudo menos homogénea. Boa parte do interior e do Sul continuava isolado, sendo a única exceção a Linha do Tua, que em 1887 chegava a Mirandela. Outro prodígio de engenharia, com a plataforma a assentar numa estreita cornija, rasgada nos granitos da margem esquerda daquela afluente. E que ainda nos nossos dias atraía visitantes de todo o mundo, até este traçado ter sido sacrificado para se construir uma barragem tornada redundante, quer do ponto de vista da reserva estratégica de água quer da produção de eletricidade, pela inauguração da sua congénere do Baixo Sabor.
Em finais do século XIX e à parte a exceção referida, a via secundária estava concentrada em torno das duas maiores cidades portuguesas: Lisboa (Linhas de Sintra e Cascais) e Porto (Linhas da Póvoa e de Guimarães). Apesar da crise política e económica, há um enorme esforço de construção levado a cabo pelo Estado: começa a duplicação da Linha do Norte, enquanto se multiplicam novas linhas de via estreita no Douro: Corgo (Régua-Vila Real, 1906), Tâmega (Livração-Amarante, 1908) ou Sabor (Pocinho-Moncorvo, 1904). O comboio de Guimarães é prolongado até Fafe (1908) e o do Tua até Bragança (1907). Constrói-se o Ramal da Lousã (1906), enquanto a sul, entre 1904 e 1909, a via-férrea chega a Montemor-o-Novo, Vila Viçosa, Mora, Moura e Portimão.
De capitais privados nascerão duas novas linhas, a do Vale do Vouga e a da Lixa. A primeira, de capitais franceses, construirá e explorará 170 km de via estreita entre Espinho, Aveiro e Viseu, entre 1910 e 1914. A segunda é um caso curioso, ligando Penafiel (Linha do Douro) à Lixa através de uma via assente sobre a plataforma da estrada e cuja eletrificação chegou a ser estudada.
METRO DE SUPERFÍCIE EM PENAFIEL
Discussões que encheram as páginas dos jornais nos últimos anos são, afinal, tão antigas como o caminho de ferro. A começar pelo metro de superfície: deve o comboio aproveitar a plataforma das ruas e estradas, de forma a servir as zonas mais povoadas ou cingir-se a corredores próprios? O Caminho de Ferro de Penafiel foi um verdadeiro metro de superfície do seu tempo. E a ferrovia deve ser negócio ou serviço social? Companhias privadas com dinâmica só as houve à volta de Lisboa (Sociedade Estoril) e Porto (Caminhos de Ferro da Póvoa e de Guimarães, depois unificados nos Caminhos de Ferro do Norte de Portugal). Quando se tratou de chegar a zonas menos povoadas ou longínquas teve de ser o Estado a arregaçar as mangas: na via larga Sul e Sueste, Minho e Douro, além de Corgo, Tâmega, Sabor e parte do Tua em via estreita.
Finalmente, a ideia de um modelo de gestão perfeito (operador único ou diversidade de empresas) é tão ilusória como um modelo universal de beleza. Desde o início do caminho de ferro em Portugal houve ciclos de unificação e desagregação, coexistência de público e privado, concessões de troços da rede pública a privados, isto até ao grande movimento unificador na CP em 1947 (novamente quebrado pela transformação da Linha da Póvoa em Metro do Porto em 2005 e pela abertura à exploração privada do serviço Lisboa-Fogueteiro-Setúbal, em 1999).
Como não podia deixar de ser, a ferrovia marcou a História lusa. Foi de comboio que a notícia da implantação da República chegou à província. Nos anos agitados da I República travou-se uma verdadeira “batalha dos carris” entre ferroviários grevistas e forças policiais. Foi na Estação do Rossio que o presidente Sidónio Pais, em que uns viam um salvador e outros um aspirante a tirano, foi assassinado. De comboio partiram de Lisboa as forças mobilizadas pela República para derrotar a efémera monarquia do Norte. Na Linha do Tua, entre Mirandela e Carvalhais, houve um ataque dos guerrilheiros de Paiva Couceiro ao comboio que levava a guarnição republicana, digno de um épico de John Ford. E, claro, foi no primor da tecnologia ferroviária da época, a automotora italiana que fazia o Foguete (na Linha do Norte), que Humberto Delgado fez a sua famosa viagem ao Porto nas eleições de 1958, primeiro sobressalto da ditadura desde os anos 30.
Os anos 50 são justamente anos de mudança. Em 1949, a ferrovia portuguesa atingira a máxima extensão, com a inauguração do troço final da Linha do Tâmega até Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto). Começavam a estudar-se alternativas à tração a vapor e tinham chegado no ano anterior as primeiras locomotivas a gasóleo vindas dos EUA, bem como as primeiras automotoras, estas fabricadas na Holanda. Enquanto as linhas de via estreita começavam a ficar duplamente obsoletas (infraestrutura e material circulante), o serviço suburbano na Grande Lisboa e no Grande Porto trazia novos problemas.
Se o fim do século XIX marcara o apogeu do comboio, a segunda metade do século XX foi a do advento do automóvel privado. Claro que Portugal não ficou imune ao retrocesso da ferrovia verificado por toda a Europa a partir dos anos 60. A diferença, apesar de tudo, é que os franceses conseguiram manter ao serviço vastos troços de ferrovia para fins turísticos, beneficiando de uma dinâmica de associativismo e sociedade civil sem paralelo entre nós. E os vizinhos espanhóis, se por um lado apostaram na alta velocidade, por outro souberam reconverter a via estreita, sobretudo no País Basco e na Cantábria, criando para o efeito uma empresa pública específica, a FEVE.
A partir da década de 80 inicia-se em Portugal o ‘comboiocídio’, gerado por um ciclo vicioso: a infraestrutura estava envelhecida, o material circulante pouco se renovava e a estratégia nacional era a rodovia. Em consequência, o serviço perde qualidade, a afluência de passageiros baixa e segue-se mais desinvestimento e assim sucessivamente até à constatação da evidência de que mais vale fechar.
Nos anos do cavaquismo começa a desaparecer a via estreita, tanto no Douro (toda a linha do Sabor e parte das linhas do Tua, Corgo e Tâmega) como na Beira (encerramento total do Vale do Vouga e da Linha do Dão, isolando Viseu da rede ferroviária nacional). Também no Alentejo desaparece o serviço para Mora, Reguengos, Estremoz ou Vila Viçosa. Nova razia se seguirá a partir de 2012, com o fim da via estreita do Douro, incluindo troços de extraordinário potencial turístico como a Linha do Tua (submersa pela barragem homónima), o fecho do Ramal de Alfarelos e do da Lousã, o fim do serviço ferroviário para Elvas, Portalegre ou Marvão, além do fecho da Linha da Beira Baixa entre Covilhã e Guarda, que sofrera obras recentes.
O comboio tem que seguir a demografia e a economia e o que fazia sentido em 1920 pode deixar de o fazer. Mas que novos troços se abriram nas zonas de maior pujança demográfica? Pouca coisa, excetuando a abertura da Ponte 25 de Abril ao comboio. E onde melhorou o serviço, a partir de 1999 e 2000, com os Alfas Pendulares, Intercidades e novos comboios suburbanos? Justamente nas áreas metropolitanas e no eixo litoral. Será que o resto do país é só paisagem?
FERROVIA REDUZIDA AOS SERVIÇOS MÍNIMOS E RESTRITA AO EIXO LITORAL FARO-BRAGA
Texto de Carlos Cipriano*
Bragança, Vila Real, Chaves, Amarante, Viseu, Portalegre e Elvas ficaram sem comboio. Portugal, que agora celebra os 160 anos do caminho de ferro, encerrou nas últimas três décadas 1300 km de via-férrea dos 3658 km em exploração em 1989. No mesmo período o número de quilómetros de autoestradas subiu de 200 para 3100. O país ferroviário resume-se hoje ao eixo litoral Braga-Porto-Lisboa-Faro de onde irradiam algumas linhas complementares. Perdeu-se o efeito de rede (uma das mais-valias do caminho de ferro) e ficou um conjunto de itinerários, muitas vezes sem ligação entre si. Como chegámos a isto?
Quatro de janeiro de 2009. A linha da Figueira da Foz a Cantanhede e Pampilhosa (50 km) é encerrada “por razões de segurança”. Três meses depois, a 24 de março, é a vez do que restava das linhas do Corgo (Régua-Vila Real) e do Tâmega (Livração-Amarante) encerrar “por tempo indeterminado”. Ana Paula Vitorino, secretária de Estado dos Transportes, promete na altura um investimento de 40 milhões de euros para reabilitar aquelas linhas, garantindo a sua reabertura em setembro do ano seguinte. A linha do Tua estava encerrada porque tinha havido dois descarrilamentos e falava-se que não reabriria devido à barragem.
Tecnicamente, a circulação estava “suspensa”. Em 2011, com um novo governo e o garrote da troika, o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro, torna definitivos os encerramentos e manda também fechar a linha do Alentejo entre Évora e Funcheira, bem como o serviço de passageiros na linha do Leste entre Abrantes e Elvas.
Após o ‘comboicídio’ dos anos 90, fechavam outros 144 km e terminava o serviço de passageiros em mais 138. A linha do Douro e subsidiárias que somavam 578 km encolhiam para 179.
Enquanto se sonhava com o TGV, a rede convencional definhava à míngua de investimento. Com mais de 1100 milhões de euros gastos, apenas dois terços da Linha do Norte estão modernizados, havendo a promessa de terminar até 2020. Mas trata-se apenas de renovar a via e não duma verdadeira modernização que permita a alta velocidade.
Passado. Desenho de Stuart Carvalhais para a “Gazeta dos Caminhos de Ferro”
ILUSTRAÇÃO CEDIDA PELA HEMEROTECA MUNICIPAL DE LISBOA
A viagem entre as duas cidades leva 2h44 em Alfa Pendular quando nos anos 80 se fazia em três horas com os Intercidades. Só em alguns troços o pendolino dá um ar da sua graça com 220 km/h porque a infraestrutura não dá para mais. O Intercidades, que para em mais estações, faz Santa Apolónia-Campanhã em 3h09. Em 1953, o Foguete fazia quatro horas...
De Entrecampos a Faro, o Alfa Pendular tarda 2h52 e o Intercidades 3h22. Só num curto troço se circula a mais de 200 à hora. Na serra algarvia os comboios não passam dos 80 km/h porque a linha foi eletrificada mas não se eliminaram as curvas mais apertadas.
Estes tempos de percurso só foram conseguidos porque não há paragens intermédias. Ermidas, Canal Caveira, Alcácer do Sal e — pasme-se! — Setúbal ficaram sem comboio para o Algarve. O “regional” que parava em todas foi extinto por se achar que o Alentejo é um deserto sem passageiros.
Houve nos últimos 20 anos dois picos de investimento, ambos relacionados com eventos exteriores à ferrovia: a Expo-98 e o Euro-2004. Melhorou-se a Linha do Norte, compraram-se os pendulares, pôs-se comboio na Ponte 25 de Abril e modernizaram-se as linhas para o Algarve, bem como os ramais de Braga e de Guimarães.
No resto da rede fecharam-se linhas e deixaram-se as restantes com sistemas de exploração arcaicos. Não haverá na Europa país onde haja tal disparidade entre linhas dotadas de modernos sistemas de sinalização e telecomunicações e o resto.
Duas linhas foram vítimas da sua própria modernização: o ramal da Lousã e o troço Covilhã-Guarda da Linha da Beira Baixa. A primeira foi fechada em janeiro de 2010 para ser transformada no Metro do Mondego, cuja linha entraria pela cidade de Coimbra. Nunca se soube porque não começaram as obras pelo troço urbano — mais difícil e dispendioso e se começou por fechar o que existia. E sem acautelar financiamento, porque depois veio a troika... Que futuro para estes 37 km de linha onde bastaria ter eletrificado para melhorar? O novo-riquismo triunfou.
Entre Covilhã e Guarda são 46 km, ligando a Linha da Beira Baixa à da Beira Alta. É como a A23 a entroncar na A25 na Guarda. Mas tirando um troço perde-se o efeito de rede. Em 2009 a linha fechou para modernização, um investimento de 85 milhões de euros. A crise financeira levou à paragem das obras, deixando um troço requalificado de 10 km nunca estreado.
Com a austeridade, os recursos afetos à manutenção da rede que sobreviveu aos encerramentos foram reduzidos ao mínimo e a infraestrutura degradou-se. A segurança só se mantém porque a velocidade vai descendo em função do estado da via. Os maquinistas explicam que os constantes afrouxamentos impedem cumprir horários.
Em 2014, na Linha da Beira Alta, num mês e meio, descarrilaram três comboios de mercadorias. Em julho de 2015 outro descarrilamento e o último foi com uma automotora em janeiro.
Na Linha de Cascais juntam-se mau estado da linha e comboios obsoletos. O Governo anterior queria concessioná-la a privados, com um caderno de encargos que os obrigava a investir milhões para recuperar a via e comprar comboios novos. O atual Governo nem lhe faz alusão no plano de investimentos ferroviários até 2020.
À margem de quaisquer planos de modernização estão os últimos 98 km de via estreita. A Linha do Vouga está desmembrada em dois segmentos: Espinho-Oliveira de Azeméis (33 km) e Aveiro-Sernada do Vouga (35 km). No troço central, entre Oliveira de Azeméis e Sernada (30 km), o serviço é de táxi porque a velocidade máxima na linha é de 10 km/h.
Sérgio Monteiro colocara esta linha para abate, mas autarcas e populações protestaram. Nos planos do atual Governo não há menção a estas duas linhas que, ao contrário da via estreita do Norte, servem um litoral povoado, nas coroas de Espinho e Aveiro.
Todos os dias de madrugada saem de Coruche autocarros com gente para trabalhar em Lisboa. No ramal de Vendas Novas só passam comboios de mercadorias. Bastaria prolongar alguns comboios suburbanos da linha da Azambuja até Coruche para haver ligações diretas a Lisboa. Em setembro de 2009, a duas semanas das eleições legislativas, chegou a ser montado um vaivém entre Coruche e o Setil mas era preciso mudar para os “regionais” até Lisboa. O serviço durou meses.
Em setembro de 2009, regressou o serviço de passageiros entre Ermesinde e Leça do Balio, mas falhou porque o serviço nunca foi prolongado até Leixões. Foram prometidos apeadeiros em Arroteia e no Hospital de São João para servir Matosinhos. O investimento era reduzido, a linha já lá estava. Mas foi um naufrágio à vista de Leixões.
A Fertagus, do grupo Barraqueiro que explora o serviço Lisboa-Setúbal, tem terminal em Roma/Areeiro. Quem venha de comboio da margem sul e queira prosseguir para o Norte é obrigado a mudar naquela estação e depois na Gare do Oriente, a 5 km. Para prolongar o serviço ao Oriente, a Fertagus precisava de mais comboios. A CP tem-nos em quantidade suficiente, pois alguns até estão parados...
Em 1966, Manuel Rodrigues tentou emigrar para França, mas foi barrado pela Pide em Vilar Formoso. “Voltei para Alfarelos e apanhei a automotora para o Bombarral.” Esta viagem de há 50 anos, repetida hoje, implicaria apanhar, não dois mas quatro comboios: um de Vilar Formoso à Guarda, outro para Alfarelos, outro para as Caldas da Rainha e, por fim, outro para o Bombarral. Três transbordos em 380 km.
O efeito de rede também desapareceu porque a exploração é uma manta de retalhos. A CP semeia transbordos. Três de Setúbal a Portimão (transbordos em Pinhal Novo e Tunes); idem para Setúbal-Porto (Roma/Areeiro e Oriente); e igualmente para Torres Vedras-Aveiro (Caldas da Rainha e Coimbra), Santarém-Beja (Oriente e Casa Branca), Olhão-Évora (Faro e Pinhal Novo), Abrantes-Guarda (Entroncamento e Coimbra), Amadora-Leiria (Cacém e Caldas da Rainha), ou Beja-Barreiro (Casa Branca e Pinhal Novo).
Esta gestão de vistas curtas divide as linhas em pequenos troços onde os comboios andam a “passar a ferro” para trás e para a frente em percursos curtos. Entretanto, Viseu é a maior cidade da Europa continental não servida pelo comboio...
*Jornalista especializado em questões ferroviárias
RUI CARDOSO
22.10.2016 às 14h00
Expresso
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