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CRÓNICA: Os sapatos dos outros
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CRÓNICA: Os sapatos dos outros
Não é claro que poder sentir as mesmas coisas que os outros, sobretudo se esses sentimentos forem de aflição, dependa de um esforço que possamos fazer. E também não é claro que o devamos fazer sempre
Muitos filósofos aconselham a que tentemos enfiar-nos nos sapatos dos outros. Porquê? O conselho não é dado de modo literal. Não trata da diferença entre um 35 e um 36, que não obstante pode causar dificuldades e dissabores técnicos. Recomenda antes que façamos um esforço para nos enfiar naquilo de que os sapatos são apenas a extremidade inferior: a posição das outras pessoas. Diz que devemos por regra tentar ocupar a posição das outras pessoas: pensar como elas e sentir como elas; ou, como também se ouve na sociedade civil, que devemos tentar ser simpáticos.
Poucos discordarão da bondade genérica da admonição e das boas intenções dos admonitores. A palavra ‘simpatia’ desperta simpatia. Tem uma origem que sugere essa possibilidade de ocupar a posição de outras pessoas. Trata-se no entanto de uma situação ainda mais improvável do que a de nos poderem servir os sapatos de quem não conhecemos de lado nenhum: o milagre de se ser afligido pelas mesmas coisas que os nossos vizinhos. Não é todavia claro que poder sentir as mesmas coisas que os outros, ainda mais se esses sentimentos forem de aflição, dependa de um esforço que possamos fazer. E é ainda menos claro que o devamos fazer em todas as circunstâncias.
A questão não é nem geral nem uma questão de esforço; pôr-nos no lugar dos outros não é como conseguir fazer o pino. Não há exercícios repetidos que permitam assegurar simpatia da nossa parte; por muito favoráveis que sejam as nossas disposições, ou por mais aguda que seja a consciência dos nossos deveres, não podemos ter a certeza de nos conseguir enfiar nesses sapatos alheios. Além disso quando o conseguimos fazer as nossas aflições e simpatia tomam muitas vezes o freio nos dentes, e acabamos ocupados com a nobreza dos nossos sentimentos, e a magnitude do nosso esforço. Imaginamos que a simpatia é como um número de natação sincronizada: mas normalmente parece-se com um mau número de natação sincronizada, em que só fazemos o que achamos que devemos uma fracção de segundo mais tarde.
Em matéria de sapatos, as situações que exigem um exame mais cuidadoso são assim as situações em que percebemos que o esforço para calçar os sapatos alheios é nocivo e inadequado. São as situações em que percebemos que o que conta para exprimir a nossa simpatia é a desincronização entre a posição de outra pessoa e a nossa posição: em que renunciamos a impressionar terceiros com o desgosto que sentimos com os desgostos deles; em que renunciamos a escalar os nossos sentimentos por razões morais. Fazer justiça aos sentimentos dos outros depende muitas vezes disso. Percebemos nesses momentos que cada pessoa tem os seus próprios sapatos. Percebemos ainda que aquilo que nos une realmente aos outros é independente de podermos vir a ocupar a sua posição, ou de querer calçar os seus sapatos.
Miguel Tamen
4/11/2016, 4:05
Observador
Muitos filósofos aconselham a que tentemos enfiar-nos nos sapatos dos outros. Porquê? O conselho não é dado de modo literal. Não trata da diferença entre um 35 e um 36, que não obstante pode causar dificuldades e dissabores técnicos. Recomenda antes que façamos um esforço para nos enfiar naquilo de que os sapatos são apenas a extremidade inferior: a posição das outras pessoas. Diz que devemos por regra tentar ocupar a posição das outras pessoas: pensar como elas e sentir como elas; ou, como também se ouve na sociedade civil, que devemos tentar ser simpáticos.
Poucos discordarão da bondade genérica da admonição e das boas intenções dos admonitores. A palavra ‘simpatia’ desperta simpatia. Tem uma origem que sugere essa possibilidade de ocupar a posição de outras pessoas. Trata-se no entanto de uma situação ainda mais improvável do que a de nos poderem servir os sapatos de quem não conhecemos de lado nenhum: o milagre de se ser afligido pelas mesmas coisas que os nossos vizinhos. Não é todavia claro que poder sentir as mesmas coisas que os outros, ainda mais se esses sentimentos forem de aflição, dependa de um esforço que possamos fazer. E é ainda menos claro que o devamos fazer em todas as circunstâncias.
A questão não é nem geral nem uma questão de esforço; pôr-nos no lugar dos outros não é como conseguir fazer o pino. Não há exercícios repetidos que permitam assegurar simpatia da nossa parte; por muito favoráveis que sejam as nossas disposições, ou por mais aguda que seja a consciência dos nossos deveres, não podemos ter a certeza de nos conseguir enfiar nesses sapatos alheios. Além disso quando o conseguimos fazer as nossas aflições e simpatia tomam muitas vezes o freio nos dentes, e acabamos ocupados com a nobreza dos nossos sentimentos, e a magnitude do nosso esforço. Imaginamos que a simpatia é como um número de natação sincronizada: mas normalmente parece-se com um mau número de natação sincronizada, em que só fazemos o que achamos que devemos uma fracção de segundo mais tarde.
Em matéria de sapatos, as situações que exigem um exame mais cuidadoso são assim as situações em que percebemos que o esforço para calçar os sapatos alheios é nocivo e inadequado. São as situações em que percebemos que o que conta para exprimir a nossa simpatia é a desincronização entre a posição de outra pessoa e a nossa posição: em que renunciamos a impressionar terceiros com o desgosto que sentimos com os desgostos deles; em que renunciamos a escalar os nossos sentimentos por razões morais. Fazer justiça aos sentimentos dos outros depende muitas vezes disso. Percebemos nesses momentos que cada pessoa tem os seus próprios sapatos. Percebemos ainda que aquilo que nos une realmente aos outros é independente de podermos vir a ocupar a sua posição, ou de querer calçar os seus sapatos.
Miguel Tamen
4/11/2016, 4:05
Observador
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