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Um país, dois sistemas
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Um país, dois sistemas
Perante o anúncio feito sobre o combate à precariedade, o mínimo que se pode exigir é que o Estado seja, pelo menos, tão competente a legislar contra si como foi a fazê-lo quanto aos privados.
À semelhança do que há décadas sucede na Europa, a luta contra a precariedade também tem sido anunciada entre nós, pese embora, muitas vezes, o acerto legislativo seja, pelo menos, duvidoso. Assim, foi sob forte mediatização que a conhecida Lei contra a Precariedade viu a luz do dia, atenção esta que se foi esfumando à medida que a mesma se revelou um fraco remédio para um mal tão generalizado.
Passou agora quase despercebido o anúncio do Governo de pretender legislar com vista a pôr fim às situações de precariedade no Estado e, contudo, confirmando-se, é uma medida da mais elementar justiça.
Não obstante ao longo da sua formação de base todos os juristas terem decorado que o Estado é uma pessoa de bem, as largas dezenas de milhares de precários que para ele trabalham são uma clara demonstração do oposto.
Na verdade, neste país – que se diz ser de Direito Democrático – o Estado reserva para si uma solução que nega aos particulares: enquanto um trabalhador que esteja ilegalmente contratado por uma empresa privada pode pedir a sua reintegração e os salários intercalares em caso de despedimento ilícito, se o empregador for esse mesmo Estado tal é-lhe expressamente vedado, alegando-se que é inconstitucional. Cria-se, por esta via, um duplo regime, cuja razão distintiva é, apenas, a qualidade do empregador.
Com vista a apresentarem números que agradem à opinião pública, o que os sucessivos governos têm feito é, do mesmo modo que não admitem funcionários, recrutam falsos recibos verdes ou, até, obrigam os trabalhadores a criar uma sociedade unipessoal, por forma a melhor disfarçar o que salta aos olhos. No caso do SNS, por exemplo, a proibição de contratação de mais profissionais foi pasto para a explosão de empresas de outsourcing que acabam por custar ao erário público muito mais do que os contratos de trabalho tidos por necessários.
Por outro lado, no que concerne aos professores, a anunciada “regularização” parece apenas contemplar contratos de trabalho a termo há mais de 20 anos, o que, a verificar-se, radica num total absurdo jurídico e, aqui assim, de mais do que duvidosa conformidade constitucional.
Dito isto, perante o anúncio feito, o mínimo que se pode exigir é que o Estado seja, pelo menos, tão competente a legislar contra si como foi a fazê-lo quanto aos privados. Desejavelmente, deveria fazê-lo, aprendendo com os erros que cometeu na Lei contra a Precariedade. Até porque, recorde-se, o Estado que assim se porta e que recusa deixar-se inspeccionar é exactamente o mesmo que tem a Autoridade para as Condições de Trabalho e que aplica coimas aos privados, por vezes, por muito menos do que isso. Há coisas fantásticas, não há?
A autora escreve segundo a antiga ortografia.
Rita Garcia Pereira, Advogada
00:13
Jornal Económico
À semelhança do que há décadas sucede na Europa, a luta contra a precariedade também tem sido anunciada entre nós, pese embora, muitas vezes, o acerto legislativo seja, pelo menos, duvidoso. Assim, foi sob forte mediatização que a conhecida Lei contra a Precariedade viu a luz do dia, atenção esta que se foi esfumando à medida que a mesma se revelou um fraco remédio para um mal tão generalizado.
Passou agora quase despercebido o anúncio do Governo de pretender legislar com vista a pôr fim às situações de precariedade no Estado e, contudo, confirmando-se, é uma medida da mais elementar justiça.
Não obstante ao longo da sua formação de base todos os juristas terem decorado que o Estado é uma pessoa de bem, as largas dezenas de milhares de precários que para ele trabalham são uma clara demonstração do oposto.
Na verdade, neste país – que se diz ser de Direito Democrático – o Estado reserva para si uma solução que nega aos particulares: enquanto um trabalhador que esteja ilegalmente contratado por uma empresa privada pode pedir a sua reintegração e os salários intercalares em caso de despedimento ilícito, se o empregador for esse mesmo Estado tal é-lhe expressamente vedado, alegando-se que é inconstitucional. Cria-se, por esta via, um duplo regime, cuja razão distintiva é, apenas, a qualidade do empregador.
Com vista a apresentarem números que agradem à opinião pública, o que os sucessivos governos têm feito é, do mesmo modo que não admitem funcionários, recrutam falsos recibos verdes ou, até, obrigam os trabalhadores a criar uma sociedade unipessoal, por forma a melhor disfarçar o que salta aos olhos. No caso do SNS, por exemplo, a proibição de contratação de mais profissionais foi pasto para a explosão de empresas de outsourcing que acabam por custar ao erário público muito mais do que os contratos de trabalho tidos por necessários.
Por outro lado, no que concerne aos professores, a anunciada “regularização” parece apenas contemplar contratos de trabalho a termo há mais de 20 anos, o que, a verificar-se, radica num total absurdo jurídico e, aqui assim, de mais do que duvidosa conformidade constitucional.
Dito isto, perante o anúncio feito, o mínimo que se pode exigir é que o Estado seja, pelo menos, tão competente a legislar contra si como foi a fazê-lo quanto aos privados. Desejavelmente, deveria fazê-lo, aprendendo com os erros que cometeu na Lei contra a Precariedade. Até porque, recorde-se, o Estado que assim se porta e que recusa deixar-se inspeccionar é exactamente o mesmo que tem a Autoridade para as Condições de Trabalho e que aplica coimas aos privados, por vezes, por muito menos do que isso. Há coisas fantásticas, não há?
A autora escreve segundo a antiga ortografia.
Rita Garcia Pereira, Advogada
00:13
Jornal Económico
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