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Ortografia: o (des)acordo do desasso"cego"
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Ortografia: o (des)acordo do desasso"cego"
Um estrangeiro que queira integrar-se num outro país tem tendência para se tornar conformista. Quer adotar, sem questionar, os hábitos da sociedade que o acolhe. A primeira prova de adaptação que enfrenta diariamente é a língua. Como as crianças, o estrangeiro aprende imitando os outros. Contudo, enquanto no léxico ainda há margem para reinventar palavras ou introduzir estrangeirismos, o âmbito linguístico em que não parece haver margem para a originalidade é a ortografia. Aí o estrangeiro quer regras claras para aplicar; descobre-se quase um simpatizante da ditadura, a ortografia torna-se o espaço da obediência cega.
Em Portugal - onde os estrangeiros (em particular os jornalistas) observaram com algum espanto a aplicação de uma das mais duras políticas de austeridade europeia dos últimos anos, obstaculizada por uma oposição popular primeiro maciça, mas quase sempre extraordinariamente ordeira, depois cada vez mais silenciosa, contrastando com as cenas de violência que se viam nas ruas de outras eurozonas - temos assistido a uma crescente insubmissão ortográfica que, provavelmente, levará à revisão, ou mesmo à anulação, do acordo ortográfico AO90. As notícias mais recentes referem o manifesto de cidadãos contra o acordo, que conta com as assinaturas de várias personalidades da esfera literária, científica e política.
Ao manifesto não faltam bons argumentos. Entre todos, destaco apenas um, marginal e ao mesmo tempo diabólico, como todos os detalhes: a confusão entre "óptico" (que diz respeito aos olhos) e "ótico" (que diz respeito aos ouvidos); prova de que nem sempre a etimologia é uma brincadeira entre eruditos e de que as linguagens setoriais são tão importantes como a língua "do povo".
Porém, o estrangeiro sedento de imperativos só pensa: OK, mas tirem-me deste pesadelo! O pesadelo é haver jornais que acatam o acordo e jornais que não acatam. Pior ainda, colaboradores dos jornais que acatam a fazerem questão de não acatar vs. colaboradores de jornais que não acatam a fazerem questão de acatar (o período linguístico é confuso porque o período histórico também o é, peço desculpa). A questão foi-se tornando cada vez mais ideológica (quem sabe um pouco de história social e linguística não ficará surpreendido), mas de uma ideologia cada vez mais transversal e labiríntica. Alguns aceitaram logo a ideia de uma ecuménica "concordata" ortográfica entre Portugal e as ex-colónias, outros recusam-na porque "não temos de falar como brasileiros e africanos"; salvo lembrar, à direita, que os africanos ainda não adotaram o acordo, e, à esquerda, que a ideia inicial foi de Cavaco Silva.
Por isso, num país onde é possível ler, nas legendas dos filmes, traduções como "indivíduo de raça negra" por black guy (coisa que, até na recém-nascida "América de Trump", é capaz de custar ao tradutor o despedimento, nem que seja só pela referência à "raça"), surgiu uma nova forma de politicamente correto: albarda-se a ortografia à vontade do destinatário. Será que o sotôr quer as consoantes mudas? Pensamos antes de escrever. Aos jovens que queiram enviar o CV à procura de emprego aconselho seriamente a informarem-se primeiro.
Pois é... os jovens. Os adultos brigam e os mais novos já estudam numa escola que há anos adota o AO90. Entretanto, nas redes sociais, trocam mensagens escritas na versão 2.0 dos hieroglíficos egípcios: os emojis. Os inimigos do acordo têm de agir rapidamente, pois vem aí uma geração sem qualquer apego afetivo às consoantes mudas. Os poucos otorrinos que necessitem de distinguir "óptico" de "ótico" aprenderão a entender-se de qualquer forma. A ortografia, numa língua, é o elemento mais caduco. Não nos apercebemos disso porque lemos Camões atualizado e a ortografia, ao contrário do vocabulário, apresenta-se na página como eterna.
Recentemente, graças a uma edição da Imprensa Nacional de O Livro do Desassossego, descobrimos que Pessoa escrevia "desassocego". A palavra, na capa, feria o nervo óptico, deixando indiferente o nervo ótico.
Jornalista freelance, colaborador da QCODEMAG
02 DE FEVEREIRO DE 2017
00:41
Marcello Sacco
Diário de Notícias
Em Portugal - onde os estrangeiros (em particular os jornalistas) observaram com algum espanto a aplicação de uma das mais duras políticas de austeridade europeia dos últimos anos, obstaculizada por uma oposição popular primeiro maciça, mas quase sempre extraordinariamente ordeira, depois cada vez mais silenciosa, contrastando com as cenas de violência que se viam nas ruas de outras eurozonas - temos assistido a uma crescente insubmissão ortográfica que, provavelmente, levará à revisão, ou mesmo à anulação, do acordo ortográfico AO90. As notícias mais recentes referem o manifesto de cidadãos contra o acordo, que conta com as assinaturas de várias personalidades da esfera literária, científica e política.
Ao manifesto não faltam bons argumentos. Entre todos, destaco apenas um, marginal e ao mesmo tempo diabólico, como todos os detalhes: a confusão entre "óptico" (que diz respeito aos olhos) e "ótico" (que diz respeito aos ouvidos); prova de que nem sempre a etimologia é uma brincadeira entre eruditos e de que as linguagens setoriais são tão importantes como a língua "do povo".
Porém, o estrangeiro sedento de imperativos só pensa: OK, mas tirem-me deste pesadelo! O pesadelo é haver jornais que acatam o acordo e jornais que não acatam. Pior ainda, colaboradores dos jornais que acatam a fazerem questão de não acatar vs. colaboradores de jornais que não acatam a fazerem questão de acatar (o período linguístico é confuso porque o período histórico também o é, peço desculpa). A questão foi-se tornando cada vez mais ideológica (quem sabe um pouco de história social e linguística não ficará surpreendido), mas de uma ideologia cada vez mais transversal e labiríntica. Alguns aceitaram logo a ideia de uma ecuménica "concordata" ortográfica entre Portugal e as ex-colónias, outros recusam-na porque "não temos de falar como brasileiros e africanos"; salvo lembrar, à direita, que os africanos ainda não adotaram o acordo, e, à esquerda, que a ideia inicial foi de Cavaco Silva.
Por isso, num país onde é possível ler, nas legendas dos filmes, traduções como "indivíduo de raça negra" por black guy (coisa que, até na recém-nascida "América de Trump", é capaz de custar ao tradutor o despedimento, nem que seja só pela referência à "raça"), surgiu uma nova forma de politicamente correto: albarda-se a ortografia à vontade do destinatário. Será que o sotôr quer as consoantes mudas? Pensamos antes de escrever. Aos jovens que queiram enviar o CV à procura de emprego aconselho seriamente a informarem-se primeiro.
Pois é... os jovens. Os adultos brigam e os mais novos já estudam numa escola que há anos adota o AO90. Entretanto, nas redes sociais, trocam mensagens escritas na versão 2.0 dos hieroglíficos egípcios: os emojis. Os inimigos do acordo têm de agir rapidamente, pois vem aí uma geração sem qualquer apego afetivo às consoantes mudas. Os poucos otorrinos que necessitem de distinguir "óptico" de "ótico" aprenderão a entender-se de qualquer forma. A ortografia, numa língua, é o elemento mais caduco. Não nos apercebemos disso porque lemos Camões atualizado e a ortografia, ao contrário do vocabulário, apresenta-se na página como eterna.
Recentemente, graças a uma edição da Imprensa Nacional de O Livro do Desassossego, descobrimos que Pessoa escrevia "desassocego". A palavra, na capa, feria o nervo óptico, deixando indiferente o nervo ótico.
Jornalista freelance, colaborador da QCODEMAG
02 DE FEVEREIRO DE 2017
00:41
Marcello Sacco
Diário de Notícias
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