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Salada de orelha de porco para a troika
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Salada de orelha de porco para a troika
Foram vários os motivos que me levaram a viver em Portugal, e um deles foi sem dúvida a comida portuguesa. Aliás, não estou a falar só de uma questão de paladar, mas de uma ideia mais vasta. Acredito que a cozinha portuguesa ajuda a construir um sentimento de fraternidade entre as pessoas e uma ideia do que significa ser português. Toda a gente parece gostar de partilhar uma lembrança do primeiro cozido feito pela avó ou do restaurante com a melhor feijoada em todo o país, ultrapassando assim barreiras sociais ou culturais existentes.
É algo novo para mim, porque na Alemanha nunca experimentei nada parecido. Os meus pais faziam parte da chamada Geração de 68 que tentou, naquele ano e nos anos seguintes, libertar o país dos restos do regime nazi que ainda se sentia nas escolas, universidades e administrações. A rebelião converteu o meu pai num homem com cabelo comprido, e a minha mãe numa mulher fortemente influenciada pelo feminismo. Parece que esta geração tentou quebrar com tudo o que fazia parte da "velha Alemanha reacionária", e no caso dos meus pais isso incluía a tradicional cozinha alemã. Comíamos pratos italianos, gregos, vegetarianos, misturados, imaginados, mas o único lugar onde eu podia comer um belo Schnitzel (panado de carne de porco) era na casa do meu avô materno, que só visitávamos durante alguns dias nas férias. Não, o meu avô não era nazi, simplesmente preparou o prato preferido dos seus netos, e com isso ganhou os nossos corações, mesmo que tivéssemos de ouvir durante o almoço todos as anedotas (repetidas) da sua juventude. Eu gostava da cozinha alemã, mas para mim ela não teve nenhuma dimensão social. Já a viver sozinho e a estudar em Berlim, não me lembro de ter ido uma vez com os meus amigos a um restaurante de comida alemã: piza sim, Schnitzel não.
Por outro lado, a comida portuguesa fez para mim desde o início parte inseparável de um país que eu hoje chamo a minha casa. De facto, há pratos fantásticos: cabrito assado com arroz de açafrão ou as famosas sardinhas na brasa acompanhadas de alface com tomate e coentros frescos, entre tantos outros. Mas algo faz falta à cozinha portuguesa para realmente se tornar num paladar com projeção internacional: a confiança. Não vou falar de estrelas Michelin ou de pastéis de nata em Nova Iorque. Refiro-me a pratos da cozinha portuguesa que não são consensuais e que podem provocar, pelo menos na maioria dos alemães que conheço, um sentimento de revolta intestinal. A verdade é que esta comida podia muito bem ser usada num combate político. E quem era mestre desta arte marcial culinária era o antigo chanceler alemão Helmut Kohl.
Ao contrário dos meus pais, Helmut Kohl gostava muito da tradicional cozinha alemã, especialmente de um prato chamado Saumagen (estômago de porco). Durante os anos cruciais antes da reunificação alemã, convidou os homens mais poderosos do mundo a ir a um pequeno restaurante, perto do lugar onde ele nasceu, no estado do Palatinado. Relembremos que depois da queda do Muro de Berlim a reunificação alemã não era um dado adquirido. Sem a autorização dos aliados da Segunda Guerra Mundial nenhuma decisão sobre o futuro da Alemanha era possível. E havia dúvidas: os franceses temiam que uma Alemanha reunificada se transformasse num poder hegemónico na Europa, e os soviéticos não gostavam muito da ideia de que a nova Alemanha fizesse parte da NATO. Milagrosamente, Helmut Kohl conseguiu convencer todos e deste modo surgiu o boato que Bush, Gorbachev, Mitterrand e Thatcher só concordaram com tudo o que o chanceler lhes pedia porque queriam livrar-se de uma vez por todas de mais um prato de Saumagen naquele restaurante de cozinha típica alemã.
Se calhar foi isso que faltou aos governantes portugueses durante os anos da troika - uma noção de que certos pratos podem servir como arma política. Porque a ameaça de ser obrigado a comer um prato cheio de salada de orelha de porco, uma dose e meia daquelas caracoletas gordas ou as tripas à moda do Porto certamente podia ter ajudado a atenuar a fome dos burocratas internacionais por mais e mais austeridade.
12 DE FEVEREIRO DE 2017
22:16
Tilo Wagner, jornalista da Deutschlandradio em Portugal
Diário de Notícias
É algo novo para mim, porque na Alemanha nunca experimentei nada parecido. Os meus pais faziam parte da chamada Geração de 68 que tentou, naquele ano e nos anos seguintes, libertar o país dos restos do regime nazi que ainda se sentia nas escolas, universidades e administrações. A rebelião converteu o meu pai num homem com cabelo comprido, e a minha mãe numa mulher fortemente influenciada pelo feminismo. Parece que esta geração tentou quebrar com tudo o que fazia parte da "velha Alemanha reacionária", e no caso dos meus pais isso incluía a tradicional cozinha alemã. Comíamos pratos italianos, gregos, vegetarianos, misturados, imaginados, mas o único lugar onde eu podia comer um belo Schnitzel (panado de carne de porco) era na casa do meu avô materno, que só visitávamos durante alguns dias nas férias. Não, o meu avô não era nazi, simplesmente preparou o prato preferido dos seus netos, e com isso ganhou os nossos corações, mesmo que tivéssemos de ouvir durante o almoço todos as anedotas (repetidas) da sua juventude. Eu gostava da cozinha alemã, mas para mim ela não teve nenhuma dimensão social. Já a viver sozinho e a estudar em Berlim, não me lembro de ter ido uma vez com os meus amigos a um restaurante de comida alemã: piza sim, Schnitzel não.
Por outro lado, a comida portuguesa fez para mim desde o início parte inseparável de um país que eu hoje chamo a minha casa. De facto, há pratos fantásticos: cabrito assado com arroz de açafrão ou as famosas sardinhas na brasa acompanhadas de alface com tomate e coentros frescos, entre tantos outros. Mas algo faz falta à cozinha portuguesa para realmente se tornar num paladar com projeção internacional: a confiança. Não vou falar de estrelas Michelin ou de pastéis de nata em Nova Iorque. Refiro-me a pratos da cozinha portuguesa que não são consensuais e que podem provocar, pelo menos na maioria dos alemães que conheço, um sentimento de revolta intestinal. A verdade é que esta comida podia muito bem ser usada num combate político. E quem era mestre desta arte marcial culinária era o antigo chanceler alemão Helmut Kohl.
Ao contrário dos meus pais, Helmut Kohl gostava muito da tradicional cozinha alemã, especialmente de um prato chamado Saumagen (estômago de porco). Durante os anos cruciais antes da reunificação alemã, convidou os homens mais poderosos do mundo a ir a um pequeno restaurante, perto do lugar onde ele nasceu, no estado do Palatinado. Relembremos que depois da queda do Muro de Berlim a reunificação alemã não era um dado adquirido. Sem a autorização dos aliados da Segunda Guerra Mundial nenhuma decisão sobre o futuro da Alemanha era possível. E havia dúvidas: os franceses temiam que uma Alemanha reunificada se transformasse num poder hegemónico na Europa, e os soviéticos não gostavam muito da ideia de que a nova Alemanha fizesse parte da NATO. Milagrosamente, Helmut Kohl conseguiu convencer todos e deste modo surgiu o boato que Bush, Gorbachev, Mitterrand e Thatcher só concordaram com tudo o que o chanceler lhes pedia porque queriam livrar-se de uma vez por todas de mais um prato de Saumagen naquele restaurante de cozinha típica alemã.
Se calhar foi isso que faltou aos governantes portugueses durante os anos da troika - uma noção de que certos pratos podem servir como arma política. Porque a ameaça de ser obrigado a comer um prato cheio de salada de orelha de porco, uma dose e meia daquelas caracoletas gordas ou as tripas à moda do Porto certamente podia ter ajudado a atenuar a fome dos burocratas internacionais por mais e mais austeridade.
12 DE FEVEREIRO DE 2017
22:16
Tilo Wagner, jornalista da Deutschlandradio em Portugal
Diário de Notícias
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