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Mensagem por Admin Sáb Mar 04, 2017 12:11 pm

Suponha que recebia a notícia da morte de Einstein, Darwin ou um dos grandes cientistas da história. Isso sucedeu a 21 de Fevereiro, com o falecimento de Kenneth Joseph Arrow, um dos maiores economistas de todos os tempos.

Muitos ficarão incomodados, ou até irritados, com a comparação. Sobretudo nestes tempos de crise, a dignidade científica da economia anda muito combalida. O que não deixa de ser curioso, pois a morte de um doente ou uma tempestade não põe em causa a solidez intelectual da medicina ou meteorologia. Mas há muito que sabemos que as recessões são tão inevitáveis quanto o óbito ou a intempérie; aliás combinando aspectos de ambos.

Não existem muitas dúvidas de que a economia é uma ciência, sobretudo por duas razões, que a brilhante carreira de Arrow manifesta abundantemente. Primeiro, nestes temas existem muitos casos em que o senso comum está plenamente convencido de enormes disparates; depois, porque os modelos técnicos que o podiam esclarecer estão muito para lá da compreensão do leigo. Isto basta para tornar indispensável a existência de uma disciplina intelectual organizada para lidar com o assunto. A diferença neste caso, face às chamadas "ciências exactas", está na presença de poderosos interesses sociais que têm muito a ganhar com a manutenção dos disparates, assim escarnecendo da ciência que os contraria. As experiências eleitorais de 2016 são suficientes para mostrar a dramática relevância do facto.

Kenneth Arrow era um matemático, um brilhante matemático. Isso chega para o desvirtuar perante muitos, que ainda lamentam a formalização como a grande desgraça da economia. Mas, também aqui, a sua carreira mostra como a complexidade dos métodos não impede a clareza e utilidade prática dos resultados. O nova-iorquino conseguiu alguns dos mais intrincados feitos técnicos da história que, ao mesmo tempo, têm impactos simples e concretos na vida das pessoas.

Arrow começou o seu trabalho com dois dos feitos mais espantosos de qualquer ciência: uma revolução metodológica e a descoberta da pedra filosofal. A sua tese de doutoramento de 1951, "Social choice and individual values" teve o valor raro de mudar o rumo de uma disciplina. A teoria da escolha pública trata da formação das preferências de um grupo a partir das escolhas individuais, algo com que uma família lida todos os dias e constitui a base da democracia, entre muitos outros casos. A questão era antiga, mas foi totalmente modificada pelo estrondo de um resultado, a que o autor chamou Teorema Geral de Possibilidade, e que os colegas, num curioso caso de inversão, conhecem por Teorema da Impossibilidade de Arrow. Ele demonstra que, se não limitarmos as opiniões dos indivíduos, não existe qualquer forma de, sem a ditadura de um membro, garantir que as escolhas do grupo sigam a lógica elementar. O texto é um tratado da matemática mais avançada, mas as consequências são elementares e bem palpáveis.

Após de ter abanado a disciplina logo no texto que o graduava, Arrow conseguiu a solução de um velho enigma. Juntamente com um colega francês, Gérard Debreu, atacou o problema mais complexo da ciência, que fora formulado 80 anos antes, e permanecia sem resposta.

A maior dificuldade da economia é que tudo tem a ver com tudo. As compras de um cliente afectam o sucesso da empresa, que por sua vez influencia o salário dos trabalhadores, vendas de fornecedores, pagamentos de empréstimos, gerando novas ondas de impactos nos negócios de outros sectores, reverberando por toda a economia. O sistema completo destas relações tinha sido estabelecido em 1874 por um génio francês, Léon Walras, mas permanecia sem solução matemática. O artigo de 1954 "Existence of an equilibrium for a competitive economy" resolveu o problema, estabelecendo um dos resultados mais centrais da ciência. De novo o texto vem mergulhado em álgebra hermética, mas a conclusão é clara e simples.

Estes foram os inícios de uma carreira de mais 70 anos e que lhe concedeu o Prémio Nobel aos 51, o mais jovem de sempre. As áreas em que Arrow deu contributos decisivos e, quase sempre seminais, são inúmeras como a economia da inovação, saúde, crescimento, bem-estar, informação, ambiente, organização, etc. Falecido aos 95 anos, o seu último trabalho com dois jovens colegas, acerca da indústria farmacêutica americana, é de Julho de 2016 e ainda está em publicação. Mas as duas ideias que lhe dão um lugar ímpar na profissão continuam a ser aquelas por onde começou, escolha pública e equilíbrio geral.

Além disso, tinha uma mente enciclopédica, capaz de pontificar em todos os âmbitos. Contam-se dele várias das histórias clássicas, em que um grupo de colegas, fartos de o verem intervir nos temas mais estranhos, decidem estudar um assunto abstruso para o calarem, conseguindo apenas revelar nova área da sua erudição. Além disso, era um homem simples e simpático, sempre pronto a ajudar os mais jovens, um protótipo do génio.

04 DE MARÇO DE 2017
00:03
João César das Neves
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