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Mensagem por Admin Seg Ago 25, 2014 6:10 pm

PRAIA Crónica de verão (3): somos um país de gajos porreiros – depois de mortos, claro 20140518_222901-190x190

O senhor Sousa morreu hoje.         


No funeral do senhor Sousa compareceram muitos amigos e vários conhecidos, boa parte dos quais recentes aquisições Facebook. No funeral do senhor Sousa estiveram as suas três ex-mulheres. À primeira, enganou-a ele com a melhor amiga na véspera do casamento, mas ainda assim casaram-se, estava tudo marcado, olha a trabalheira, o copo de água pago, olha a despesa, os convidados confirmados, olha o escândalo, por isso casaram-se na mesma, boda condenada de antemão, a suspensão da pena não passou dos 7 anos. Acontece muito. A segunda fartou-se dele após 15 anos e várias infidelidades depois e foi chorar para o ombro do Antunes da Contabilidade, que no final já lhe fazia o IRS e tratava das contas; o senhor Sousa não achou graça às intimidades da legítima e do Antunes da Contabilidade, mas não teve outro remédio senão conformar-se quando confrontado com os papéis do divórcio. Acontece muito. A terceira ex-mulher foi um erro de casting, pois tinha menos 27 anos do que ele e a coisa durou apenas dois anos, tendo-o ela trocado por um PT com menos 12 do que ela, o que lhe dava para ser para aí da idade do primeiro neto do senhor Sousa. Acontece cada vez mais (atéporque há cada vez mais PT’s, com o devido respeito pela profissão, bem entendido). Duranteo funeral do senhor Sousa chorou-se muito; que era um marido exemplar (disse a primeira mulher), um homem generoso (a segunda), um querido (a terceiro, apoiada nos músculos hipertrofiados do jovem PT). Os amigos, entre fungadelas e anedotas, disseram-no fixe, um gajo porreiro, um tipo fantástico, pena ter ido tão cedo, e outras vaguidades semelhantes. Verteram-se lágrimas, evocou-se o digno vulto desaparecido e depois ala, foi cada um para a respectiva vida. Iniciou-se nesse dia o processo de esquecimento da memória do senhor Sousa.

É sempre assim em Portugal. Somos bons, maravilhosos, cheios de potencial, pelo menos uma vez na vida: quando morremos. Desde que estejamos mortos…

Conto-vos outra história: eu tive um parente, um afastado parente, homem do mundo, viajado, empresário, rico, casado com uma nobre senhora, também minha parente, também já falecida, cujo processo de enriquecimento mereceria por si só um romance (em 3 partes). Esse parente afastado construiu uma espécie de império, todas as portas se lhe abriam, era um senhor com S grande. Pois o Senhor meteu-se em alhadas com umas meninas de idade baixa num processo que deu brado (e foi condenado), vindo a refugiar-se num país ultramarino (para lá do mar, nada a ver com conotações colonialistas) do diz que diz-se e da baixa intriga – que entre nós em vida ninguém reconhece o mérito e muito se fustiga o carácter alheio, somos, como dizer, um bocadinho bota-abaixistas -, tendo ali falecido de uma inesperada apoplexia (como se dizia), artérias endurecidas e o coração cessante, nos braços de uma donzela local. A coisa soube-se, a coisa comentou-se, o senhor, perdão, o Senhor, regressou sob a forma de corpo morto com destino traçado. Exequiou-se o dito cujo meu parente: grande consternação, o padre exaltou-lhe as qualidades morais, princípios e valores; a viúva chorou-o com olhos de amor, velou-o com desvelos de amante, despediu-se com carinho e mal adiada saudade. Pelo tempo de um velório, um funeral e talvez, apenas talvez, até à missa do 7o dia, o meu parente foi o mais santo, honesto e fiel dos homens. Requiescet in pace.

A toda esta estranha realidade – a de que amamos mais os mortos do que os vivos, ou, pelo menos, os recentemente mortos – oferecem-se distintas explicações. A primeira, mais simples e radical, é que, por conveniência social, estamos pura e simplesmente a fingir. “O gajo era um sacana”, pensamos, e em voz alta, “perdeu-se um grande homem”. A segunda hipótese resulta da concorrência: quem morre, deixa à partida de ser uma ameaça de qualquer espécie. Seria assim tão incompreensível o alívio do Sousa caso o Antunes da Contabilidade tivesse morrido afogado em números? Mal ele imaginava que, atrás do Antunes, aos cafezinhos com a sua segunda mulher, estava o António do Despacho, só que como é sabido o Antunes continuou vivo, quem morreu foi o Sousa, por isso o período anterior não faz sentido. Ou é porventura estranho o alívio de alguém perante o passamento de um chefe que lhe bloqueia as ambições? O do político no activo face ao falecimento do político reformado mas não desactivado – uma pedra no sapato, pois muito mais prestigiado? Ou até o leve sentimento de alívio da mulher dantes bonita aquando do desaparecimento de outra mulher dantes ainda mais bonita? A terceira explicação para esta espécie de esquizofrenia é que não somos bons da cabeça, mas não convém generalizar, por isso o melhor é esquecê-la. A quarta, quiçá a mais correcta, resulta do nosso bom coração: face ao ser vivo actuante, despudorado e/ou brilhante, inteligente, inepto (o que for), somos ferozes, implacáveis e acerbos. Mal falece, bem, então o caso muda de figura e a nossa proverbial bondade leva-nos ao imediato – acto contínuo – perdão, e a uma profunda compreensão para com o fundamento e as razões das eventuais maldade, estupidez, foleirice, etc. (o que tiver sido), exibidos pelo falecido em vida.

E afinal, que interessa tudo isto? Também não sei, confesso, mas gostava de estava vivo no dia do meu funeral para ouvir falar bem de mim; deve ser o máximo.

Falta referir a excepção: as gentes públicas, aqueles que, por mérito ou função, merecem o reconhecimento da comunidade. São políticos – sim, políticos! -, artistas, desportistas, cientistas, ministros de um culto, benfeitores. Excluo os chamados “notáveis”, os que são conhecidos porque sim, a quem deverá ser dedicado não um mas vários artigos, o que eu não farei pois não sou capaz. Falemos dos verdadeiramente dignos:

As personalidades públicas constituem excepção à regra do reconhecimento em morte, depois de vidas esmagadas ao peso da maledicência. Em relação a eles há dois elogios prévios à morte, muito interessantes e didácticos. Para ilustrar o primeiro, caso o leitor tenha contactos numa redacção (não fale à do Observador, um grupo pequeno e muito ocupado que só cá está há uns meses) tente obter exemplos dos obituários já preparados para o caso da morte num futuro próximo de algumas figuras públicas cuja idade ou estado de saúde justifiquem tal precaução. São em geral laudatórios, com muitas páginas, plenos de adjectivos, pequenas histórias privadas e uma extensa biografia, variando só em função da notoriedade do futuro falecido . O segundo momento, com bastos e infelizes exemplos nos últimos anos em Portugal, respeita aos casos em que as ditas cujas personalidades adoecem com gravidade ou têm uma idade e estado geral que anuncia morte iminente (tendo já desencadeado os ditos cujos pré-obituários). Nesse caso, o Estado, os amigos, as instituições, apressam-se a organizar homenagens públicas, com lustre, discursos gordos, comendas e louvaminhice. O homenageado, quando comparece (e porque comparece, pergunto-me?), exala uma lágrima furtiva e agradece os amigos que nele pensaram, maravilhado com a quantidade e qualidade das presenças. Ninguém senão os seus botões o escutam indignar-se com o despudor da presença de alguns que, anos a fio, o criticaram, difamaram, vilipendiaram. A contemplar o fim do caminho que ali tão estentoreamente se anuncia, reflecte ainda na condição humana.

Portugal, escreveu Eça, “deve esforçar-se por ganhar um lugar entre as nações civilizadas pela sua educação, a sua literatura, a sua ciência, a sua arte – provando assim que ainda existe, porque ainda pensa”. Mas isso implica naturalmente valorizar quem tem valor – com espírito crítico, é certo, mas sem rancor ou inveja –, reconhecendo-lhes em vida, e quando a vida ainda pode ser plena e vigorosa, o mérito.

Fernando Pessoa, o que nunca falta, escreveu com clareza: “Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda/Do mistério e da falta da tua vida falada…/Depois o horror do caixão visível e material,/ E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali./Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,/Lamentando a pena de teres morrido,/(…)Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,/E a vida de todos os dias retoma o seu dia…/Depois, lentamente esqueceste”.

É em vida, enquanto estamos vivos, que a memória do futuro se começa a construir …

Professor da Católica – Estudos Políticos

18 horas
Paulo de Almeida Sande
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