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Ode ao conflito
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Ode ao conflito
O capitalismo tende a impor uma sociedade de consumo e a criar uma globalização de cidadãos que devem estar predispostos a consumir, abdicando da reclamação e do confronto de interesses ou de posições.
A experiência do conflito faz parte do campo social onde ele se manifesta de uma forma transversal que pode ir da política à literatura. Não terão o mesmo impacto, sequer o mesmo valor colectivo, uma greve de operários e a relação de confronto com um texto ou um filme ou uma doença (embora, individualmente, estes conflitos possam tomar proporções dolorosas). E, contudo, na actualidade o conflito é tomado como algo remanescente, arcaico e até bárbaro. Como coisa a ser diabolizada, sobretudo porque os conflituosos são geralmente associados aos que reivindicam, contestam, reclamam, ocupam, propõem o dissensus.
No estádio actual, o capitalismo tende a impor uma sociedade de consumo e a criar uma globalização de cidadãos que devem estar predispostos a consumir, abdicando da reclamação e do confronto de interesses ou de posições. Isto é tanto mais evidente quanto os governos ou reclamam o fim da conflitualidade ou a escamoteiam. Em qualquer dos casos, transferem para o lado dos opositores – sejam eles os sindicatos, os manifestantes da oposição ou os intelectuais – o ónus da criação do conflito, escamoteando também que o conflito resulta sempre do confronto de interesses e que os interesses estão associados a valores. Ao trabalho intelectual que deve subentender aquilo a que os gregos chamavam aletheia (a desocultação e a justiça das coisas) cabe não só assumir o conflito como, se necessário, produzi-lo. E ele é tão ou mais relevante quanto muitos outros o não podem fazer por receios vários.
Não se trata de reeditar a ideia do intelectual orgânico de Gramsci, uma ideia vanguardista de fusão do intelectual com o povo. Trata-se de fazer política com as palavras, repondo a ideia expressa na teoria da política de J.L Austin segundo a qual os actos da fala podem ser de enorme força reclamativa.
Uma das tarefas prementes do tempo presente é entender, desconstruir e explicar os mecanismos de dominação que passaram de fases de primarismo pós-industrial para a globalização financeira suportada pela proximidade e entreajuda entre os governos nacionais e os governos financeiros. Porém, nem tudo é igual e as proposições generalistas e a longo prazo falham por transferirem para o futuro impensado projecções que olvidam o presente.
Por isto, a análise dos mecanismos de dominação deve ser feita compreendendo e intervindo na conjuntura precisa.
Era isto o que preconizava Stuart Hall ao afirmar que “o terreno complexo e historicamente específico de uma crise que afecta – mas de formas desiguais – uma formação específica social-nacional como um todo” deve ser tomado como o momento em que se acumulam coisas, se intensificam contradições, se fundem ou separam pensamentos e actos ou acontecimentos – havendo em todos eles conflito. Daí a importância de trabalhar sobre a conjuntura e nela intervir intelectualmente, até porque as forças dos conflitos estão em contante mutação.
Não estamos condenados a conflitos internos e por vezes surge algum equilíbrio entre as forças. Deste momento pode dizer-se ser de compromisso entre as partes, o que pode ter alguma durabilidade exterior; mas em qualquer conjuntura o conflito está ou latente ou manifesto.
Importa nunca confundir compromisso com consenso. Enquanto o primeiro resulta de negociação cultural na mais abrangente definição deste termo, o segundo – o consenso – é o adiamento de um conflito, um modo cínico de enfraquecer a energia potencial e criadora que existe no conflito quando este está ainda muito longe de ser guerra.
A este propósito, e para evitar a culpa que a noção de conflito pode inculcar em alguns intelectuais, será oportuno reler a peça Mãe Coragem de Bertolt Brecht – onde, para evitar assumir o conflito, a heroína conduz à morte os dois filhos. Também oportuna será a leitura de Na solidão dos campos de algodão de Bernard-Marie Koltés, onde fica explícito que é prioritário assumir o conflito como inevitabilidade entre sujeitos opostos e só enfrentando-o se pode conseguir uma paz episódica. Só assim se entende que o que define o intelectual e lhe dá autoridade é a sua capacidade de criar alteridade. Caso contrario, o intelectual não é necessário.
ANTÓNIO PINTO RIBEIRO 12/09/2014 - 03:52
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