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Mensagem por Admin Qua Out 08, 2014 11:28 am

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Parte da cobardia coletiva face à indisciplina deriva do pavor dos anátemas lançados pelos novos inquisidores. O medo de pisar o risco do politicamente correto prejudica o destino das sociedades


O sucesso  campanha de Bill Clinton às eleições presidenciais norte-americanas, em 1992, é indissociável do slogan “É a economia, estúpido!”. Décadas passadas, por cá contentamo-nos com a vacuidade do “Pôr a economia a crescer”. Se no domínio das mais elementares condições de vida o discurso político vegeta a esse nível, na área do ensino arrasta-se uns furos mais abaixo. Nem sequer se chegou ao equiparável “Pôr a indisciplina a descer” e muito menos “É a indisciplina, estúpido!”.

Algumas notas introdutórias. Primeira, o funcionamento das escolas tem no âmago as atitudes e comportamentos dos que as frequentam. Segunda, as disfuncionalidades existentes neste domínio são em regra originadas por uma minoria, bastando um par de alunos para desestabilizar uma turma inteira e daí gerar-se o efeito bola de neve. Terceira, vivemos tempos em que o princípio respeitável de proteção das minorias atingiu características de paranoia coletiva porque se mantém mesmo quando significa atentar contra direitos elementares das maiorias, como o de ensinar e aprender com dignidade e qualidade.

Outra nota. Cada época tem a sua marca. Ora predominou, por exemplo, a identificação com o radicalismo religioso que permitiu a inquisição; ora predominou uma atitude de súbdito na relação com quem governava, o que explicou a radicalização do poder do estado nos tempos das ditaduras. Como sempre, apenas numa fase posterior as sociedades se apercebem dos seus estádios de alienação pretéritos. Nos dias que correm somos toxicodependentes do materialismo histórico e dialético (ou marxismo). Descodificado em senso comum, significa a crença avassaladora de que o essencial do funcionamento das nossas sociedades e instituições gira à volta das condições materiais. Acreditamos que com dinheiro tudo se resolve, tudo funcionará melhor.

Se é inegável que a disponibilidade de meios financeiros ajuda a ultrapassar parte das limitações ou disfunções sociais e institucionais, não é menos inegável que outra parte depende das atitudes e comportamentos dos indivíduos. Trata-se de domínios relativamente autónomos entre si – material e comportamental – e é de extrema importância conferir primazia a ambos de acordo com as especificidades de cada contexto.

Para além do défice de determinadas atitudes e comportamentos, se existe domínio no qual o dinheiro em excesso foi bastante prejudicial é o do ensino. Descontados os episódios risíveis dos investimentos no computador Magalhães, bem pior foi o facto do acesso fácil ao dinheiro a crédito na transição de século, aliado à “paixão pela educação”, ter impulsionado uma das mais desastrosas reformas. Na substância, traduziu-se na sobrecarga dos currículos do ensino básico e secundário ao longo de mais de uma década à custa da introdução, nos horários dos alunos, de áreas com rotulagens pomposas: Área de Projeto, Estudo Acompanhado e Formação Cívica. O leitor não necessita de saber o que são. Quem por lá andou e teve formação intensiva para o efeito, como eu, acabou em idêntico estado.

Do que não restam dúvidas é do lastro dessa reforma. Durante a sua vigência, a indisciplina nas escolas agravou-se de modo continuado, o contrário do que prometiam os avultados investimentos. A ideia de aula foi desregulada, passando dos estáveis 50 minutos para a oscilação aleatória entre 45 e uns insuportáveis 90 minutos, oscilação com impacto na desregulação de atitudes e comportamentos dos alunos, uma vez que o sistema perdeu um dos referentes essenciais de estabilidade. O desrespeito pela sala de aula enquanto espaço para a tranquilidade da aprendizagem foi agravado, posto que tais inovações pedagógicas ajudaram, como nunca, a transferir o ambiente ruidoso do pátio para o interior da sala de aula. Foram sacrificadas horas letivas semanais de disciplinas estruturais (ciências, história, geografia, entre outras) no altar da nova ideia de escola. Fazia ainda parte da reforma desviar os professores das suas áreas de conhecimento científico ou académico de origem para se entreterem numa espécie de carnaval permanente rotulado de áreas transversais. Entre outras estultices.

Pejadas de resquícios do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural maoístas, pior só mesmo os responsáveis por tais engenharias sociais nunca terem sido confrontados com a dimensão dos seus erros, nem terem sido disponibilizados à opinião pública os custos financeiros, seguramente astronómicos, implicados na massificação de tais experiências de laboratório. Não foi apenas no betão (estádios de futebol e demais elefantes brancos) que se torraram dinheiros públicos. Certas utopias pedagógicas não são indiferentes ao descalabro financeiro. Porém, neste caso nem sequer existe consciência da gravidade dos abusos perpetrados, nem a opinião pública se mostra sensível. Por isso, o regresso em força dos pedagogos do regime depende apenas de uma próxima ronda eleitoral.

Quando comparo o que vou observando em Moçambique com o que conheço de experiência vivida das salas de aula do básico e secundário em Portugal, é muito evidente que o ensino português não sofre de limitações ao nível dos recursos materiais ou humanos. Há muito que a matéria-prima existente chega e sobeja para que as escolas funcionem muitíssimo melhor. O verdadeiro obstáculo é a fortíssima resistência cultural em aceitar que é no domínio das atitudes e comportamentos em salas de aula e face ao estudo que residem as mais graves carências do ensino.

Apesar de ser mais do que evidente tratar-se, acima de tudo, de um fenómeno cultural, ideológico, político e civilizacional – não se deteta em toda a classe política, nem nos discursos dominantes no espaço público, quem ouse filiar-se a slogans do tipo “Pôr a indisciplina a descer” ou “Pôr o estudo a subir” enquanto princípios orientadores da ação política e cívica no ensino. Sobrevivemos rendidos a uma dupla cobardia coletiva.

Por um lado, apesar de intuirmos que o núcleo chave da gestão do ensino reside na regulação de atitudes e comportamentos dos alunos e que qualquer coisa deve mudar a esse nível, o facto é que nos tornámos exímios na exibição frenética de comportamentos de fuga face ao que mais incomoda. Escudamo-nos na sobrevalorização obsessiva de temas como a avaliação dos professores, a liberdade de escolha das escolas, a renovação do modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, o ajustamento e renovação material da rede escolar, a revisão das carreiras docentes, a revisão da regras dos concursos de professores. Por aí adiante.

Desta interminável amálgama não vimos, não vemos, nem veremos resultados com impacto substantivo na melhoria do ambiente quotidiano das salas de aula, o espaço onde o verdadeiramente importante se decide. Não nego que os aspetos referidos possam fazer algum sentido. Mas qualquer deles, sem exceção, tem significado marginal quando comparado com o núcleo-chave que faz mover o ensino: “É a indisciplina, estúpido!”.

A outra parte da cobardia coletiva face à indisciplina tem a ver com o pavor de sermos alvos de anátemas lançados pelos novos inquisidores: “fascista”, “socialmente insensível”, “destruidor da escola pública”, “desrespeitador dos que menos têm”, “desconsiderador das minorias étnicas”, “insensível ao multiculturalismo”, “contrário à escola inclusiva”, “direitolas” e demais mimos. O temor de pisar o risco do politicamente correto tem sido nocivo para o destino das sociedades ocidentais.

Como entrei na sociedade portuguesa pela porta dos mais pobres vindo de África e como sempre trabalhei em salas de aula de periferias urbanas ditas difíceis, território por excelência de minorias étnicas e de segmentos da população tidos como excluídos, atributos que partilhei ou partilho, não hesito em considerar que a inércia que se arrasta há décadas no combate efetivo à indisciplina nas salas de aula constitui dos mais cínicos e refinados sintomas de desprezo pelos pobres, pelas minorias étnicas e pelos excluídos. Descontada uma escola de qualidade, estes praticamente não têm outras possibilidades de transformação da sua condição social de origem.

De resto, é esquisito viver numa sociedade onde a Assembleia da República é por excelência o lugar onde mais se concentram empresários de sucesso em sensibilidade social. Pela televisão vou vendo como certos grupos parlamentares estão povoados de negros, ciganos, mestiços, asiáticos, islâmicos e o mais. Guardo na memória as suas intervenções no hemiciclo. Os grupos parlamentares que os integram são o farol de uma ampla família de forças políticas e de portugueses decentes. Talvez por isso essa parte da sociedade portuguesa possua a auréola de titular exclusiva da legitimidade da defesa dos setores vulneráveis da população, a parte que inclui senhoras e senhores de olhar altivo, não-racistas, não-discriminatórios, moralmente superiores. Os demais indígenas, estes outros cujos grupos parlamentares com que se identificam são étnica e socialmente homogéneos, talvez devam ser merecedores de opróbrio.

Entre pesadelo, ficção e sem-vergonha às vezes é difícil perceber por onde anda a realidade.

Gabriel Mithá Ribeiro  
8/10/2014, 8:10
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