As quintas-feiras em Gotham City (uma fantasia de Natal)

Nos comics, o único jornalista com superpoderes é o que veio do planeta Krypton. Por cá, muitos têm superpoderes, pelo menos o da premonição

Usamos frases feitas sem pensar sobre o seu acerto. Se pensássemos, veríamos que muitas não merecem o uso que têm, ou porque não estão certas ou porque ficam aquém do que realmente acontece. Tomemos como exemplo uma frase célebre: "A realidade imita a ficção." Não me parece, nem tão-pouco me parece que a ficção imite a realidade. São dois mundos que vivem paralelamente, que não se tocam, nem sequer, muitas vezes, se conhecem entre si. Veja-se a realidade de algumas das nossas quintas-feiras e compare-se a mesma com a pobreza imaginativa dos comics. Estes não chegam nem aos calcanhares da agitação e dos efeitos visuais e sonoros das nossas quintas-feiras. Além disso, nos comics não há dias fixos, nem calendário previsível para as peripécias de heróis e bandidos que vivem na Gotham City que os seus artistas imaginaram, para deleite de miúdos e graúdos.

Cá na nossa Gotham City, e para deleite de graúdos (pois os episódios não são aconselháveis para miúdos), as quintas-feiras são o primeiro dia da semana. A semana começa à quinta, e normalmente com estrondo. Os nossos heróis não caçam bandidos na sombra, com arte e engenho. Caçam-nos em directo e, se possível, em prime-time. Além disso, nos comics o único jornalista com superpoderes é o que veio do planeta Krypton. Por cá não; por cá muitos têm superpoderes, pelo menos o da premonição, estando sempre no sítio certo e à hora certa quando a quinta--feira inaugura a semana. Se isto não são superpoderes, não sei o que sejam.

E à quinta-feira seguem-se normalmente quatro a cinco dias de aventuras, recheadas e coloridas, que os graúdos acompanham, com mais ou menos deleite, mas todos sustendo a respiração, enquanto esperam, presos do suspense que têm as coisas anunciadas mas não confirmadas. E vão vendo as coisas sucederem-se, umas após outras, quadradinho a quadradinho, balão de fala um depois do outro, prancha a prancha. E os mais superpoderosos até sabem ou adivinham coisas que os bandidos não sabem, e delas vão dando conta, com um bom embrulho de efeitos visuais e sonoros. Entretanto, os heróis, com as suas vestes e as suas artes, coragem e argúcia, pelejam contra os bandidos, e estes, cada vez mais cansados, começam a atascar-se na impotência.

Até que, lá para segunda, terça ou quarta-feira, tudo estará terminado, e segue-se um curto tempo de acalmia, para olear as armas, mudar as ligaduras, conduzir os bandidos ao lugar que compete às suas malfeitorias e ver os graúdos a respirar de alívio, por momentos serenos e tranquilos. Até que nasça o dia da próxima quinta-feira, e então, aí sim, faça todo o sentido aquela outra frase feita que diz "The show must go on". Podemos, cá na nossa Gotham City, não estar no lugar da frente em vários índices mundiais. Mas nisto damos dez a zero a qualquer um, incluindo aos pobres criativos dos comics. Depois disto ainda alguém acha que a realidade imita a ficção, ou que a ficção imita a realidade?

Advogado

Escreve quinzenalmente ao sábado

Por Rui Patrício
publicado em 27 Dez 2014 - 08:00
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