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Primeiros dias do ano
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Primeiros dias do ano
Viver em dois países é uma perene dança entre contrastes que tornam a existência exigente, porém, rica...
O dia amanheceu pardacento e assim vai ficar até ao fim. Eu e o meu filho, montamos nas nossas bicicletas, de caminho até à escola: "Mãe, gostas de voltar a andar de bicicleta?", "Sim", respondo. "Mãe, eu gosto tanto disto".E por "isto", o meu filho quer dizer: o dia cinzento, as árvores arrepiadas do parque, as mães que cruzamos, com quem trocamos os "bons-dias", mas também as caras familiares a quem nunca ouviremos a voz, vizinhos de bairro que descem o parque e se cruzam, a cada dia, connosco, que o subimos. É mais fácil regressar a Londres, quando os nossos filhos lhe pertencem. Num instante, se faz o que tem de ser feito. O reequacionamento; que vai da dilatação das pupilas, a toda uma ciência anestésica em que o corpo é perito, graças à qual não se notem mais os dias que amanhecem cinzentos, mas apenas os que amanhecem risonhos.
Viver em dois países é uma perene dança entre contrastes que tornam a existência exigente, porém, rica. Para dividir a vida, assim, bem, entre duas cidades, mais do que acreditar que os contrastes são profícuos, é preciso valer-mo-nos deles. Saber que gozei de sol e que, em breve, o mesmo vai estar ao meu alcance, tornam este período de interregno, mais que tolerável: conveniente, razoável, sem ele não apreciaria tanto o que há-de vir; em si, ele encerra, algo de benéfico.
A vida em Londres é muito menos social, mais retirada, interior. No Inverno, os ingleses gostam de ficar em casa. Gostam desse confinamento, cativeiro plenamente desejado. Está-se mais só, e isso é pedra-de-toque para se trabalhar. Acreditem, em Lisboa, os elementos não são propícios. Aqui, vive-se para trabalhar. Não se vive para os sentidos, e até o álcool se ingere não para alcançar prazer, nem um estádio puro e duro de torpor: esta ilha é nessa matéria, o meio caminho, entre o Sul da Europa e os países nórdicos. Quanto à diversão, é desperdício de energias e tempo a que os habitantes de uma cidade de custo de vida exorbitante se não podem entregar.
Hoje, por excepção, foi um momento de sociabilidade intensa, mas todos sabemos que a sociabilidade advém da época (pré ou pós-natalícia, pré ou pós-veraneante), do assinalar de um evento (inauguração de casa, exposição, despedida de um colega de trabalho). O convívio é uma polidez social que se pratica, não brota de um genuíno sentido ou necessidade gregária. O que é, em tudo diferente, do modo como o Sul da Europa entende o convívio, onde pode ser um rasteiro não-evento, uma prosaica não---celebração, um juntar de ombros para quebrar o peso dos dias. Aqui esse juntar de ombros era inconcebível, cada qual sabe que é na solidão e silêncio que se carrega o fardo.
Portanto, hoje é o primeiro dia de regresso à escola e à rotina, o que justifica uma confraternização mais acentuada do que o normal, já que tantos londrinos não- -nativos, foram passar o Natal a casa. Há muito para contar, neste círculo de italianas que, contrariando a propensão à endogamia, me acolheram como única estrangeira de um grupo, cujo linguarejar, gesticular e nível de barulho, me fazem sentir em Itália, sem ter de viajar até lá. Estamos naquela idade da vida em que ir a casa significa tantas vezes confrontarmo-nos com o envelhecimento e o aumento das incapacidades dos pais, com a agravante ou atenuante, dependendo dos casos, de tudo isto ser feito à distância e com um sentido de culpa a pesar. "Mia mamma mi ha distrutto", diz uma italiana com encenação. "Como é que ela te destruiu"? Pergunto. Porque estou muito magra, diz, e depois, em roda, as outras confirmam como para, uma "mamma", o arquétipo de beleza, ainda são as formas e a gordura.
A noite é de breu, a lua nova brilha alta no céu. Volto do supermercado com um saco de compras impossível de adiar. A temperatura desceu e o frio faz-me erguer a cabeça. Na esquina, encontro o sem- -abrigo, novo de idade e aos meus olhos. "Can you spare some change, please?". "I don't have any", respondo, reduzida a dinheiro plástico. "Have a good night", deseja-me. Sigo para casa a pensar no que será não ter um tecto numa noite gelada como esta, "e ele ainda me desejou uma boa noite", conto quando chego. "Ele estava a ser sarcástico, mãe", contradiz o meu filho. Mas não era bem isso, articulou apenas uma frase com a subtileza bastante, para me deixar alguma má consciência.
Escritora, a viver em Londres
Por Clara Macedo Cabral
publicado em 12 Jan 2015 - 08:00
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