Portugal é o seu cartão-de-visita

Eusébio marcou uma época, foi um exemplo de humildade e uma bandeira para Salazar, que o utilizou como prova de inclusão de uma pátria que a todos tratava por igual - num tempo em que o mundo rejeitava o colonialismo, o maior ponta-de-lança português foi assim, sem qualquer culpa, um cartão-de-visita de um Portugal mitificado e avesso à realidade.

Cristiano Ronaldo marcará uma época distinta. É a prova viva de que os verdadeiros vencedores se fazem a si próprios, com trabalho, obstinação e arrogância. Surge num tempo em que os países perderam referências e o dinheiro é um deus incontestável. Ele não é o cartão-de-visita de ninguém. Quando muito, pelo contrário, Portugal é o seu cartão-de-visita.

Há muito que não é uma dúvida. Cristiano não precisaria de ganhar esta terceira Bola de Ouro para ser já o melhor jogador português de todos os tempos. Como afirmou na cerimónia de Zurique, o objectivo é ser o melhor de sempre. Disse-o em português, o que só o enobrece. Outros, em igualdade de circunstâncias, preferiram falar em inglês. Felizmente, Cristiano optou pela língua portuguesa, que é, de tudo o que nos fez únicos, o que se mantém a nossa maior riqueza.

Cristiano corporiza muito do que não somos. Como José Mourinho, Paula Rego, António Horta Osório, Durão Barroso ou Joana Vasconcelos. Estes nomes, sem qualquer juízo positivo ou negativo acerca do que fazem ou pensam, afrontam todos os dias a imagem de um Portugal fatalista, deprimido, cauteloso, bem-comportado, temente a Deus e subserviente aos poderosos. É um símbolo de uma geração que não se importa com o confronto com o mundo, que acredita na superação, que prefere o copo meio cheio ao meio vazio, que prefere ganhar a não perder, que arrisca, que não tem medo de ser detestado.

O mundo alterou-se. Infelizmente, todo este futuro, todo este talento, está ao serviço do mundo mais do que de Portugal. Deixaram de nos pertencer, são património da humanidade, nada do que fazem poderá contribuir objectivamente para a concretização de qualquer desígnio colectivo. Temos hoje portugueses de excepção em múltiplas áreas do conhecimento, da cultura e do desporto, mas as regras do jogo não são as mesmas. Se toda esta gente tivesse nascido meio século antes, e se Portugal não vivesse numa ditadura, talvez Portugal pudesse ter beneficiado do orgulho de tanta gente estar preparada para oferecer, em várias áreas de conhecimento, novos mundos ao mundo. Não será possível, mas temos massa crítica para escrever um novo livro. Oxalá ainda seja possível.

É uma pena se não o conseguirmos. Somos passageiros de uma carruagem histórica onde o importante é o ter, não o ser. O importante é o culto do eu, não o do nós. O importante é acumular dinheiro, carros potentes, o culto da imagem, parecer. Cristiano é também um símbolo desse mundo angustiado e ferozmente injusto.

Talvez não seja justo acusá-lo disso. É pedir-lhe o que não faz qualquer sentido. Porque ele, por uma espantosa soma de circunstâncias, chegou ao cume do mundo, escalou a montanha mais alta, uma montanha ao alcance de muito poucos. Fê-lo sendo um filho pródigo deste tempo, um deus profano num mundo coberto de bezerros de ouro e falsos profetas.

Por Luís Osório
publicado em 13 Jan 2015 - 08:14
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