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RELAÇÕES HUMANAS - Pessoas e nêsperas
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RELAÇÕES HUMANAS - Pessoas e nêsperas
A propósito de pessoas, não parece boa ideia deixar que as nossas inclinações temporárias se transformem em teorias. Nenhuma série de maus anos agrícolas pode justificar a misantropia.
Apesar de não comermos uma nêspera boa há pelo menos trinta anos o nosso amor pela categoria nêspera não sofre qualquer revés. A decepção reiterada com nêsperas não atenua a constância da nossa afeição pela espécie. Não é de espantar: demoramos a mudar de opinião sobre generalidades.
Com pessoas parece ser diferente. “O meu amor”, declarou um escritor, “é por indivíduos.” Poucas pessoas gostam de pessoas em geral. O amor genérico tem à primeira vista inconvenientes: parece insuficientemente afectuoso; e por outro lado é impreciso: não sabemos bem de quem estamos a falar quando falamos da espécie. A maioria gostará por isso prudentemente de algumas pessoas, seis ou sete; e tem cuidado em não se comprometer com generalidades, justamente porque lhe acontece muitas vezes mudar de opinião a respeito dos outros.
Quem passa a vida a mudar de opinião não tem no entanto opiniões: tem inclinações temporárias. Não lhe é impossível ser um misantropo de manhã e um filantropo ao pôr do sol. Basta-lhe encontrar um ser odioso ao acordar, e uma criatura amável à hora de ir para a cama. Perguntado sobre a espécie humana, diria em rápida sucessão que é odiosa e amável e odiosa. “A humanidade,” observa com astúcia, “é neste momento detestável.” Quando começa a tentar justificar-se, porém, já mudou de ideias; passou-lhe a inclinação.
A quase ninguém admira que as nossas teorias sobre a humanidade mudem com as nossas companhias. Muitos mais se admirariam que nossas opiniões sobre gravidade, os números primos, ou aliás sobre nêsperas mudassem sempre que víssemos um balão, considerássemos o número 1, ou comêssemos outra nêspera má. A quase ninguém repugna o facto de sermos constantes a respeito de nêsperas; e de sermos volúveis a respeito de pessoas.
Podíamos experimentar ser mais constantes a respeito de pessoas; e que pelo menos falássemos das outras pessoas como quem fala de nêsperas. O nosso amor genérico por nêsperas não é incompatível com avaliações severas ou entusiásticas de nêsperas individuais, e com uma grande atenção às características de cada uma. A regra é porém a de continuar a gostar de nêsperas mesmo depois de uma série longa de decepções frutícolas. A nossa opinião sobre nêsperas é fiel, como aquelas que temos sobre as leis da física, certas praias, e o princípio do terceiro excluído. Altera-se tão devagar como a posição relativa dos continentes; e, como esta, não se altera por causa de impressões pessoais.
Devíamos tratar as nossas opiniões sobre pessoas como tratamos as nossas opiniões sobre tudo o resto, incluindo sobre nêsperas. É justamente porque a nossa experiência do género humano é no fundo parecida com a nossa experiência dos outros géneros, incluindo o das nêsperas, que não parece boa ideia deixar que as nossas inclinações temporárias se transformem em teorias. Nenhuma série de maus anos agrícolas pode justificar a misantropia.
Miguel Tamen
12/6/2015, 0:05
OBSERVADOR
Apesar de não comermos uma nêspera boa há pelo menos trinta anos o nosso amor pela categoria nêspera não sofre qualquer revés. A decepção reiterada com nêsperas não atenua a constância da nossa afeição pela espécie. Não é de espantar: demoramos a mudar de opinião sobre generalidades.
Com pessoas parece ser diferente. “O meu amor”, declarou um escritor, “é por indivíduos.” Poucas pessoas gostam de pessoas em geral. O amor genérico tem à primeira vista inconvenientes: parece insuficientemente afectuoso; e por outro lado é impreciso: não sabemos bem de quem estamos a falar quando falamos da espécie. A maioria gostará por isso prudentemente de algumas pessoas, seis ou sete; e tem cuidado em não se comprometer com generalidades, justamente porque lhe acontece muitas vezes mudar de opinião a respeito dos outros.
Quem passa a vida a mudar de opinião não tem no entanto opiniões: tem inclinações temporárias. Não lhe é impossível ser um misantropo de manhã e um filantropo ao pôr do sol. Basta-lhe encontrar um ser odioso ao acordar, e uma criatura amável à hora de ir para a cama. Perguntado sobre a espécie humana, diria em rápida sucessão que é odiosa e amável e odiosa. “A humanidade,” observa com astúcia, “é neste momento detestável.” Quando começa a tentar justificar-se, porém, já mudou de ideias; passou-lhe a inclinação.
A quase ninguém admira que as nossas teorias sobre a humanidade mudem com as nossas companhias. Muitos mais se admirariam que nossas opiniões sobre gravidade, os números primos, ou aliás sobre nêsperas mudassem sempre que víssemos um balão, considerássemos o número 1, ou comêssemos outra nêspera má. A quase ninguém repugna o facto de sermos constantes a respeito de nêsperas; e de sermos volúveis a respeito de pessoas.
Podíamos experimentar ser mais constantes a respeito de pessoas; e que pelo menos falássemos das outras pessoas como quem fala de nêsperas. O nosso amor genérico por nêsperas não é incompatível com avaliações severas ou entusiásticas de nêsperas individuais, e com uma grande atenção às características de cada uma. A regra é porém a de continuar a gostar de nêsperas mesmo depois de uma série longa de decepções frutícolas. A nossa opinião sobre nêsperas é fiel, como aquelas que temos sobre as leis da física, certas praias, e o princípio do terceiro excluído. Altera-se tão devagar como a posição relativa dos continentes; e, como esta, não se altera por causa de impressões pessoais.
Devíamos tratar as nossas opiniões sobre pessoas como tratamos as nossas opiniões sobre tudo o resto, incluindo sobre nêsperas. É justamente porque a nossa experiência do género humano é no fundo parecida com a nossa experiência dos outros géneros, incluindo o das nêsperas, que não parece boa ideia deixar que as nossas inclinações temporárias se transformem em teorias. Nenhuma série de maus anos agrícolas pode justificar a misantropia.
Miguel Tamen
12/6/2015, 0:05
OBSERVADOR
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