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Mensagem por Admin Sex Jun 19, 2015 10:29 am

Muitos sentimentais acabam por se esquecer das razões por que guardaram as coisas; a enorme importância que essas coisas tiveram para si pode tornar-se tão remota como as memórias de uma outra pessoa

As pessoas que guardam coisas dividem-se, e às vezes combinam-se, em escuteiros e sentimentais:  os escuteiros guardam coisas porque acham que podem vir um dia a precisar delas; o seu modelo é a caixa de parafusos; os sentimentais guardam coisas porque já foram importantes para si; o seu modelo é a colecção de postais.

Nem sempre os planos correm bem. Poucos escuteiros chegam a precisar de tudo o que guardaram; quase todos acabam por se esquecer daquilo que guardaram; e frequentemente voltam a guardar coisas que já tinham guardado. Muitos sentimentais acabam por se esquecer das razões por que guardaram as coisas; a enorme importância que essas coisas tiveram para si pode tornar-se tão remota como as memórias de uma outra pessoa.

Acredita-se que examinar um conjunto de coisas que foram guardadas por alguém nos diz muito sobre quem as guardou. Ao inspeccionar o conteúdo de uma caixa que encontrámos num armário fazemo-lo por vezes com as esperanças de um funcionário de alfândega com interesses psicológicos. Achamos que todas as escolhas se ajustam como peças de um único puzzle e nos permitem conhecer intimamente quem lá as pôs.

Não é no entanto fácil perceber se o conteúdo da caixa que se encontrou foi coleccionado por um escuteiro ou por um sentimental. Uma chávena desirmanada e uma fotografia de Tuy só por si não dizem nada. Se foram guardadas por um escuteiro, é provável que o propósito tenha sido o de tentar arranjar chávenas iguais, ou escrever um artigo sobre Tuy; se foram guardadas por um sentimental, é provável que a razão tenha sido uma casa onde a chávena tenha estado, ou um certo habitante de Tuy. Acontece porém que nem a chávena nem a fotografia nos dizem se foram lá postas por razões escuteiras ou sentimentais. Os nossos propósitos não passam para as coisas.

Um caso extremo é o daquelas coisas que tantas vezes encontramos em caixas arrumadas por terceiros e que não conseguimos identificar, a não ser da maneira mais trivial: uma peça de plástico que parece um carrinho de linhas mas que tem um parafuso que, da perspectiva do carrinho de linhas, não cumpre qualquer função; um quadrado de tecido onde foram desenhadas letras e talvez animais; um bocado de madeira que pode ser o assento de uma cadeira, uma tábua de cozinha, ou parte de um barco.

Quando não conseguimos identificar as coisas que alguém guardou não conseguimos já dividir o mundo em escuteiros e sentimentais; apenas admitimos que quem guardou essas coisas seria uma pessoa como nós porque nos garantem que antes de nós nascermos já havia pessoas parecidas connosco. De facto, só quando conseguimos identificar uma coisa é que podemos concluir que foi guardada por uma pessoa; e só quando conhecemos uma pessoa é que sabemos porque é que decidiu guardar uma coisa.

Miguel Tamen
19/6/2015, 7:59
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