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Equívocos de uma palavra
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Equívocos de uma palavra
Quando muitos têm ideias claras em temas complexos, o simplismo domina as discussões. Se a crise económica da Europa é um problema que desafia análises sérias e deixa especialistas perplexos, como podem tantos achar a questão óbvia e a solução evidente?
Além de cegueira ideológica e aproveitamentos oportunistas, muitos dos mal-entendidos nascem da utilização inconsiderada da equívoca palavra "austeridade", à volta da qual roda o debate. Debaixo desta noção reuniu--se enorme quantidade de elementos, alguns díspares. Distorções e variantes permitem usar o mesmo termo para significar aspectos contraditórios, alimentando confusão e polémicas.
Qual é o significado exacto do conceito e qual a sua origem e impactos? Para entender o que está em causa temos de ir ao início do problema. Esta crise manifesta-se, como todos sabem, em défices e dívidas, após a longa euforia financeira. Ora isso significa apenas que se gastou mais do que se recebeu.
Aqui surge o primeiro sentido da palavra austeridade. Os tempos de facilidade, apesar de longos, eram ilusórios, alimentados com dinheiro alheio. Assim, mesmo que todo o esbanjamento anterior fosse esquecido e as dívidas perdoadas, só para ter uma vida sensata e evitar novos desequilíbrios, era preciso descer as despesas ao nível das receitas. Muitos dos cortes - aqueles que anulam o chamado "défice primário", sem juros - servem apenas para travar a espiral de dívida.
Mas acabar com o défice primário não resolve o problema; só estanca a sangria. Portugal, Grécia e outros andaram na euforia até ao último momento, só parando o despesismo quando os mercados de crédito fecharam. Esse fecho significa que os aforradores comuns deixaram de confiar na capacidade de o país honrar as suas dívidas, e consequentemente não emprestam mais. Se nada fosse feito, isso imporia um défice nulo de um dia para o outro, por falta de alternativas, implicando a austeridade completa. Esse é o segundo conceito, de que quase não se fala.
Quando o total das despesas, incluindo os juros, tivessem imediatamente de ser iguais às receitas, o aperto seria máximo.
Esta é a disciplina mais violenta de todas, a verdadeira austeridade. Muitos países têm-se encontrado nessa condição ao longo dos séculos, como Portugal há 120 anos. Hoje felizmente existem mecanismos de ajuda externa para a evitar. É aqui que entram as organizações internacionais, que concedem financiamento quando mais ninguém o faz, permitindo adiar os cortes. Só que essa ajuda, neste caso da troika, vem com condições. Surge o terceiro conceito de austeridade, imposta nas cláusulas dos empréstimos de emergência. Esta é a mais leve das três, pela folga nos cortes, mas parece arbitrária e evitável e por isso suscita a ira de tantos. Porquê impor coacções tão duras e artificiais aos países aflitos?
As conversas comuns só apanham o fio aqui. Por isso, sem considerar o passado, atribuem à maldade insensata de dirigentes sádicos que países como Portugal ou a Grécia tanto sofram e o euro e a Europa ameacem catástrofe. Acabando com a austeridade desmiolada, tudo ficaria excelente. Serão as autoridades europeias tão estúpidas e perversas que não vêem aquilo que tantos apregoam com facilidade?
É bom lembrar um pequeno detalhe que nunca aparece nas discussões: estes países só caíram em crise porque não se souberam governar. Ou seja, os seus líderes foram capturados por interesses, próprios ou alheios, concedendo benesses acima daquilo que o país podia pagar. É isso o défice. Controlar essas reivindicações é o elemento central para solucionar o problema de fundo. Que interessa, não tanto aos credores externos, mas aos contribuintes nacionais. Os cidadãos deviam ser os primeiros a apoiar tal austeridade, porque são eles que, no fim, pagam as despesas excessivas e seus juros.
A maior parte dos críticos da austeridade põem as esperanças numa variante de almoço grátis: perdoa-se a dívida, isso liberta a economia que começa a crescer e tudo fica bem. Esquecem que antes da crise esse crescimento, ou não existiu, como em Portugal e na Itália, ou não evitou o endividamento explosivo, como na Grécia. De onde viria agora progresso tão miraculoso, para mais com os mercados financeiros fechados? Porque, é bom não esquecer, quando se repudia e insulta os credores, é difícil convencê-los a emprestar outra vez.
Austeridade é hoje uma palavra mágica, que parece controlar vidas e decidir discussões. Dada a quantidade de confusões que suscita, seria melhor um uso mais austero da palavra austeridade.
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Diário de Notícias
Além de cegueira ideológica e aproveitamentos oportunistas, muitos dos mal-entendidos nascem da utilização inconsiderada da equívoca palavra "austeridade", à volta da qual roda o debate. Debaixo desta noção reuniu--se enorme quantidade de elementos, alguns díspares. Distorções e variantes permitem usar o mesmo termo para significar aspectos contraditórios, alimentando confusão e polémicas.
Qual é o significado exacto do conceito e qual a sua origem e impactos? Para entender o que está em causa temos de ir ao início do problema. Esta crise manifesta-se, como todos sabem, em défices e dívidas, após a longa euforia financeira. Ora isso significa apenas que se gastou mais do que se recebeu.
Aqui surge o primeiro sentido da palavra austeridade. Os tempos de facilidade, apesar de longos, eram ilusórios, alimentados com dinheiro alheio. Assim, mesmo que todo o esbanjamento anterior fosse esquecido e as dívidas perdoadas, só para ter uma vida sensata e evitar novos desequilíbrios, era preciso descer as despesas ao nível das receitas. Muitos dos cortes - aqueles que anulam o chamado "défice primário", sem juros - servem apenas para travar a espiral de dívida.
Mas acabar com o défice primário não resolve o problema; só estanca a sangria. Portugal, Grécia e outros andaram na euforia até ao último momento, só parando o despesismo quando os mercados de crédito fecharam. Esse fecho significa que os aforradores comuns deixaram de confiar na capacidade de o país honrar as suas dívidas, e consequentemente não emprestam mais. Se nada fosse feito, isso imporia um défice nulo de um dia para o outro, por falta de alternativas, implicando a austeridade completa. Esse é o segundo conceito, de que quase não se fala.
Quando o total das despesas, incluindo os juros, tivessem imediatamente de ser iguais às receitas, o aperto seria máximo.
Esta é a disciplina mais violenta de todas, a verdadeira austeridade. Muitos países têm-se encontrado nessa condição ao longo dos séculos, como Portugal há 120 anos. Hoje felizmente existem mecanismos de ajuda externa para a evitar. É aqui que entram as organizações internacionais, que concedem financiamento quando mais ninguém o faz, permitindo adiar os cortes. Só que essa ajuda, neste caso da troika, vem com condições. Surge o terceiro conceito de austeridade, imposta nas cláusulas dos empréstimos de emergência. Esta é a mais leve das três, pela folga nos cortes, mas parece arbitrária e evitável e por isso suscita a ira de tantos. Porquê impor coacções tão duras e artificiais aos países aflitos?
As conversas comuns só apanham o fio aqui. Por isso, sem considerar o passado, atribuem à maldade insensata de dirigentes sádicos que países como Portugal ou a Grécia tanto sofram e o euro e a Europa ameacem catástrofe. Acabando com a austeridade desmiolada, tudo ficaria excelente. Serão as autoridades europeias tão estúpidas e perversas que não vêem aquilo que tantos apregoam com facilidade?
É bom lembrar um pequeno detalhe que nunca aparece nas discussões: estes países só caíram em crise porque não se souberam governar. Ou seja, os seus líderes foram capturados por interesses, próprios ou alheios, concedendo benesses acima daquilo que o país podia pagar. É isso o défice. Controlar essas reivindicações é o elemento central para solucionar o problema de fundo. Que interessa, não tanto aos credores externos, mas aos contribuintes nacionais. Os cidadãos deviam ser os primeiros a apoiar tal austeridade, porque são eles que, no fim, pagam as despesas excessivas e seus juros.
A maior parte dos críticos da austeridade põem as esperanças numa variante de almoço grátis: perdoa-se a dívida, isso liberta a economia que começa a crescer e tudo fica bem. Esquecem que antes da crise esse crescimento, ou não existiu, como em Portugal e na Itália, ou não evitou o endividamento explosivo, como na Grécia. De onde viria agora progresso tão miraculoso, para mais com os mercados financeiros fechados? Porque, é bom não esquecer, quando se repudia e insulta os credores, é difícil convencê-los a emprestar outra vez.
Austeridade é hoje uma palavra mágica, que parece controlar vidas e decidir discussões. Dada a quantidade de confusões que suscita, seria melhor um uso mais austero da palavra austeridade.
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Diário de Notícias
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